“Reflexões sobre Bach ou sobre Kafka são sinais indicadores dessa pertença. De onde as conversas elevadas dos começos de um amor. Ele disse que gostava de Kafka. Então, a idiota fica extasiada. Ela crê que é por ele ser intelectualmente bem. Na realidade, é porque ele está socialmente bem. Falar de Kafka, de Proust, de Bach, é a mesma coisa que as boas maneiras à mesa, que partir o pão com a mão e não com a faca, que comer com a boca fechada. Honestidade, lealdade, generosidade, amor da natureza são também sinais de pertença social. Os privilegiados têm massa: porque não seriam eles honestos ou generosos? São protegidos desde o berço até à morte, a sociedade é suave com eles: porque haveriam de ser dissimulados ou mentirosos? Quanto ao amor pela natureza, ele não abunda nos bairros da lata. Para isso é preciso ter rendimentos. E a distinção, o que é senão as maneiras e o vocabulário em uso na classe dos poderosos? Se eu digo fulano e a sua dama, sou vulgar. Esta expressão, distinta há alguns séculos, só se tornou ordinária depois que o proletariado se apoderou dela. Mas se o uso da boa sociedade fosse dizer fulano e a sua dama, você achava-me detestável por dizer fulano e a sua mulher. Tudo isso, honestidade, lealdade, generosidade, amor da natureza, distinção, todas essas bonitezas são provas de pertença à classe dirigente, e é por isso que vocês lhe dão uma tal importância, pretensamente moral! Prova da vossa adoração pela força.
“Sim, pela força, porque pela sua riqueza, pelas suas alianças, as suas amizades e as suas relações, os importantes sociais têm o poder de fazer mal. De onde eu concluo que o seu respeito pela cultura, apanágio da casta dos poderosos, não passa no fim de contas, e no mais profundo, de respeito pelo poder de matar, respeito secreto, desconhecido de si mesma. É claro, você sorri. Todos eles hão-de sorrir e encolher os ombros. A minha verdade é descortês.
Bela do Senhor, de Albert Cohen, tradução de António Pescada, Contexto Editora, 1994, páginas 325 e 326
“Sim, pela força, porque pela sua riqueza, pelas suas alianças, as suas amizades e as suas relações, os importantes sociais têm o poder de fazer mal. De onde eu concluo que o seu respeito pela cultura, apanágio da casta dos poderosos, não passa no fim de contas, e no mais profundo, de respeito pelo poder de matar, respeito secreto, desconhecido de si mesma. É claro, você sorri. Todos eles hão-de sorrir e encolher os ombros. A minha verdade é descortês.
Bela do Senhor, de Albert Cohen, tradução de António Pescada, Contexto Editora, 1994, páginas 325 e 326
Comentários
nothing further to say, :)*