Avançar para o conteúdo principal

Cartas de amor

A fotografia estava entre as páginas de um livro que comprei na Vandoma. Uma edição brasileira de «Contos Soviéticos», de 1944 (Empresa Gráfica «O Cruzeiro», Rio de Janeiro). Não tem nenhuma informação na frente ou no verso, mas foi tirada em Portugal, certamente entre os anos 70 e 80. O livro também não está assinado. O edifício que enquadra a imagem parece ser uma fábrica. Quem são estes personagens? Operários da fábrica? Administrativos? Membros da direcção? Porque decidiram eles fazer as fotografias do casamento (presumo que após a cerimónia religiosa) no cenário cinzento da fábrica e não, como se fazia na época, na praia ou num jardim? Que idade teriam eles? Vinte e poucos? Trinta? Hoje terão sessenta, setenta. Estarão vivos? Tiveram filhos? Para onde corriam? Ou de que passado escapavam eles? O corpo do homem parece querer levantar voo e levar a rapariga com ele.

O livro inclui uma história de Nadejda Aleksandrovna Lokhvitskaya, escritora muito pouco «soviética», que se exilou em Paris após a revolução e que adoptou o nom de plume de Mme. Nadine Teffy. O conto intitula-se «Cartas de amor». Eis uma passagem:

Vera amanhecera de mau humor. O vestido que lhe ficara tão bem no último domingo não queria entrar agora! Os botões e as casas, movidas pelo desejo de nada terem em comum, recusavam-se terminantemente a cobrir um espaço de dois centímetros existente nas costas de Vera.
— É impossível! Não posso ter engordado tanto em uma semana — gemia a pobre Vera, com os lábios trémulos. — Há uma semana apenas este vestido me ia às mil maravilhas!
— Agora tu é que estás uma verdadeira maravilha — disse o marido, em tom de gracejo.
A esposa protestou:
— Muito engraçado! Bem sabes que a culpa é toda tua. Hoje tens vontade de comer empadas, amanhã, macarronada à italiana… Não há silhueta que resista a um regime destes…
— Pois bem! Quem a obriga a comer? Até parece que eu a forço! Por que não se limita a ver-me comer? Muita gente pagaria caro tal espectáculo.
— Pensas que é muito bom jejuar enquanto os outros comem? Tenho a alma excessivamente delicada, bem sabes…
Amuada, Vera fechou-se no quarto.


Comentários

c disse…
A fotografia é extraordinária. Não parecem nada operários, repara como ele está vestido, até tem colete. Acho que pode ser mais antiga, anos 60 ou 70? Antes ou depois do 25 de abril? Isso muda todo o contexto.
Aposto mais nos anos 70 e já depois do 25 de Abril. Recordo-me de que nos anos 80 ainda havia muitos daqueles Peugeot (o carro preto) a circular. E tens razão, não devem ser operários.
c disse…
A matrícula MO corresponde aos anos 1964/65/66/67/90. Mas no passado os carros duravam décadas por isso a data só serve para provar que a fotografia não pode ser anterior a 1964.

O problema é: se não são operários (e não têm pinta disso), são patrões (seria a fábrica uma prenda de casamento?) e acho esquisito os patrões terem à vontade para isto logo a seguir ao 25 de abril.

Talvez administrativos ou membros próximos da direcção a quem o patrão "pagou" o casamento. Quatro ou cinco anos após a revolução, talvez fosse possível um patrão "pagar" o casamento aos empregados. A empregados mais qualificados. O engenheiro da fábrica, por exemplo.
c disse…
O engenheiro da fábrica. Pode ser. A boda na cantina e a lua de mel numa pensão jeitosa no sul :)
alexandra g. disse…
:)))

nada como o anonimato e uma imagem para suscitar ideias, deixar a imaginação em brasa, a curiosidade rebuscando as gavetas do tempo.
c disse…
um dia as pessoas vão descobrir isso :)