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Agora somos todos fragmentistas

Emil Cioran: Acho que a filosofia já não é mais possível senão como fragmento. Sob a forma de uma explosão. Agora já não é possível desatar a escrever capítulo após capítulo, sob a forma de um tratado. Nesse sentido, Nietzsche foi eminentemente libertador. Foi ele quem sabotou o estilo da filosofia académica, quem atentou contra a ideia de sistema. Ele foi libertador, porque depois dele podemos dizer qualquer coisa... Agora somos todos fragmentistas, mesmo quando escrevemos livros aparentemente coordenados. O que liga bem com o nosso estilo de civilização.

Fernando Savater: Isso também está de acordo com a nossa probidade. Nietzsche dizia que na ambição sistemática, há uma falta de probidade...

Emil Cioran: A propósito de probidade, deixe-me ainda dizer uma coisa. Quando alguém se lança num ensaio de quarenta páginas sobre o que quer que seja, parte de certas afirmações prévias e fica prisioneiro delas. Uma certa ideia de probidade obriga-o a respeitá-las até ao fim, a não se contradizer; no entanto, à medida que avança, o texto apresenta-lhe outras tentações, que tem de rejeitar porque se desviam da via traçada. Estamos encerrados num círculo que nós próprios traçámos. É assim que, ao querer ser probo, caímos na falsidade e na falta de veracidade. Se isso acontece num ensaio de quarenta páginas, o que não se passará num sistema! Aí reside o drama de qualquer reflexão estruturada: não permitir a contradição. É assim que caímos no falso, que mentimos para salvaguardar a coerência. Por outro lado, se escrevermos fragmentos, podemos, no mesmo dia, dizer uma coisa e o seu oposto. Porquê? Porque cada fragmento vem de uma experiência diferente, e essas experiências são verdadeiras — são o essencial. Haverá quem diga que isso é irresponsável mas, se assim for, será no mesmo sentido em que a vida é irresponsável. Um pensamento fragmentado reflete todos os aspectos da sua experiência; um pensamento sistemático reflete apenas um aspecto, o aspecto controlado e, portanto, empobrecido. Em Nietzsche, em Dostoiévski, exprimem-se todos os tipos possíveis de humanidade, todas as experiências. No sistema, só fala o controlador, o chefe. O sistema é sempre a voz do chefe: é por isso que todos os sistemas são totalitários, enquanto o pensamento fragmentário permanece livre.

Entrevistas com Emil Cioran, Arcades, 1995.

Comentários

Diogo Almeida disse…
e eis porque acho a arte do romance e da poesia superior à arte da filosofia: «A propósito de probidade...», está aí tudo resumido, dando alavancas para diversos motivos, mais técnicos e menos técnicos, por Cioran.

...mas qualquer "fragmentista" de hoje que se preze vê isso; não será necessário vir Cioran do túmulo alertar para o caso.
c disse…
Ah, não fui buscar Cioran ao túmulo para alertar o mundo — era o que faltava! —, mas para me divertir.

Talvez por ter sido simultaneamente um rapaz romeno dos Cárpatos e um meteco em Paris, Cioran imita bem o som de uma tempestade — e isso (para mim) é mais importante do que a hierarquia das superioridades.

Não sei se qualquer fragmentista de hoje que se preze sabe esse truque.