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O privilégio de compreender a vulgaridade de Shakespeare

Há várias referências a Hamlet e Shakespeare n’O Príncipe Negro, as que me interessam mais são estas quatro: 

Na página 141 (edição da Relógio d’Água), Julian e Bradley encontram-se por acaso na rua e acabam por falar outra vez sobre Hamlet. Digamos que é um divertimento provocador ao ar livre; uma ocasião propícia aos simbolismos (antecede a oferta das botas roxas a Julian); aquilo que mais tarde, no relatório policial, transforma-se num momento crucial para a acção, ou seja, a desgraça.

A aula, propriamente dita, começa na página 170 e já dispõe de cadeiras, mesa e livros. Aqui Bradley supera-se (só não sei se é na própria altura em que tudo acontece ou depois quando descreve a situação): 
«Porque Shakespeare conseguiu, através da pura meditação sobre o tema da sua própria identidade, criar uma nova linguagem, uma retórica especial da consciência…» (…)
«O ser de Hamlet é feito de palavras, tal como o de Shakespeare.» 
«Palavras, palavras, palavras.» 
«Há alguma obra da história da literatura donde se possa retirar mais citações?» 
«(…) Como estava a dizer, Hamlet é um monumento de palavras, é a peça mais retórica de Shakespeare, a mais longa, é o seu exercício literário mais inventivo e complexo. Repara na facilidade, na lúcida elegância com que ele estabelece as bases da prosa inglesa moderna…» 
«(…) Ele logrou um feito criador inigualável, uma obra que reflete interminavelmente sobre si própria, não de forma discursiva mas através da sua própria substância, uma caixa de palavras chinesa tão alta como a torre de Babel, uma meditação sobre as mais fundas artimanhas da consciência e sobre o papel redentor das palavras nas vidas dos seres desprovidos de identidade, ou seja, os homens. Hamlet são palavras e Hamlet também.» (…)
É depois desta aula que Bradley percebe que está apaixonado por Julian; desconfio que sem a reflexão sobre Hamlet, sem as palavras, palavras, palavras, isso não seria possível. 

No seu posfácio, Julian, agora Belling e poeta, afasta-se a toda a velocidade de Bradley, aliás nem o trata pelo nome mas pelo apelido Pearson, e escreve que nunca leu os seus livros e também não acha que ele fosse grande coisa como crítico. Parece-me que ele só compreendia o lado vulgar de Shakespeare. (Página 356)

Por fim, o enigmático editor P. Loxias encerra o rectângulo: Quando for mais madura na arte, [Julian Belling] compreenderá mais coisas. (Até pode ser que tenha então o privilégio de compreender a vulgaridade de Shakespeare.) (Página 360)

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