Como Sanda Stolojan explica no prefácio, as lágrimas são uma presença constante na escrita de Cioran. Mais do que um fluido fisiológico, respondem a uma dor profunda e antiga — remontam a muito antes do seu nascimento nos Cárpatos, atrevo-me até a dizer que surgiram com o pecado original. Cioran transporta esse mal-estar primordial e essas lágrimas obsessivas como um fardo histórico mas também como alento (?) para pensar o desespero da condição humana.
Em relação aos santos, importa fazer o mesmo exercício de abstracção e recuo: se as lágrimas são a consequência de uma tristeza constante colada à pele, os santos vêm de um sentimento religioso vigoroso mas sem destino; integram no seu âmago simultaneamente um desejo intenso (ou uma saudade?) de ligação a qualquer coisa, como é da sua natureza, e uma solidão sem saída — que desatino!
Apesar do que escreve a tradutora e também o filósofo (quando se refere a Lágrimas e Santos, Cioran gosta de sublinhar que as lágrimas ocupam um espaço mais vasto do que os santos), o livro precisa de ambos, como se fossem os extremos de um paradoxo ou, se nos deixarmos levar por um raciocínio mais destemido, as grades de uma jaula (consultar Francis Bacon para exemplos pictóricos).
Era assim que Emil Cioran pensava em 1937, com apenas 23 anos, e assim continua a pensar nas últimas décadas da sua vida. Até parece seguir as indicações do bem amado Bach, mantendo-se na velhice como na juventude: um homem pensante numa marcha contínua sabe-se lá para onde.
No entanto, se os temas são sempre obsessivos nos seus textos, se tudo o que surgiu voltará a surgir em sucessivas variações (outra vez Bach), é importante referir que o estilo mudou — e muito.
Este Cioran velho que anota nos seus Cadernos frases sofridas, palavras sacadas a ferros é um crítico feroz do jovem lírico e poético romeno. A tradução francesa feita por Sanda Stolojan ressente-se — com enorme benefício, diga-se — dessa vontade de desbastar desenfreadamente. Cioran não se limitou a concordar ou não com a escolha das palavras: cortou cerce o excesso de imagens e as frases que repetiam em devaneio o mesmo pensamento; eliminou todos os artifícios; secou o estilo até ao osso. A versão francesa transformou-se num livro concentrado mais bravo e fulgurante do que o original, uma espécie de revelação negativa (exacto, no sentido da frase de Kafka).
É um comportamento severo que encontramos mais em certos poetas implosivos (não à toa, lembramo-nos de Um Toldo Vermelho de Joaquim Manuel Magalhães) do que em filósofos, sempre virados para os desdobramentos dos seus sistemas, preocupados em edificar. Talvez seja uma pista que vale a pena seguir: pensar em Cioran como um homem que, desprezando a disciplina, procura afastar o brilho do estilo para encontrar qualquer coisa, uma coisa de nada, que existe escondida nas palavras.
Numa das entradas dos seus Cadernos, Cioran escreve: Tentar dizer com palavras o que as palavras não podem dizer. (…) Pois, é isso: o milagre?
Como nota final, um conselho: segundo a lei da boa vizinhança, Lágrimas e Santos deve ser guardado junto à poesia desesperada. Ao lado de Emily Dickinson, por exemplo.
Comentários
Breviário de Decomposição / Edições 70; pág. 109
“It’s such a little thing to weep -
So short a thing to sigh -
And yet - by Trades - the size of *these*
We men and women die!”
Duzentos Poemas / Emily Dickinson
pág. 198
Relógio d’Água, Outubro 2014
Uma boa ideia.
No lugar de <>, deve estar:
1- dádiva das lágrimas;
2 - securas
A Cristina está a fazer uma tradução como um escultor antigo, arrancando à pedra o que está a mais. Agora vejo o texto original como um bloco de mármore, ou de pedra de Ístria, de onde surgirá uma catedral maravilhosa.Trabalho árduo, esse.
E o prefácio é um belíssimo adro que convida a entrar.
Teresa
Mas, Teresa, esse trabalho de arrancar à pedra o que está a mais é do próprio Cioran velho, ele é que limou os excessos do Cioran jovem. Eu só tento estar à altura da empreitada — e já não é pouco :)