As lições de George Saunders sobre os contos russos que fazem parte do livro «Nadar num lago à chuva» são porreiras. Ele é um tipo cheio de ideias (não só literárias, sorte nossa) e consegue manter nas aulas um discurso que é aparentado aos seus contos, pelo menos tem o mesmo sentido de humor e outra coisa que não sei dizer bem o que é, mas que me atrai sempre e muito.
Já estou na análise do último conto, «Aliocha, o Pote», de Lev Tolstói, e confesso que fiquei espantada por achar esta história a mais admirável de todas. Se tivesse que responder a um questionário prévio, nunca escolheria Tolstói como escritor (russo) preferido e mesmo depois de ler a pequena narrativa e apesar de me dar conta da sua extrema resistência (como se diz dos materiais) ao entendimento, ainda não sabia da sua importância. Mas as dúvidas que Saunders levanta obrigaram-me a reler e a investigar.
Foi a ambiguidade que Tolstói reservou para o final da história e da vida de Aliocha que provocou todo este alvoroço, quer dizer, o que não foi dito (porquê? o autor não sabe ou sabe e prefere nada dizer?) funciona como a ervilha debaixo dos colchões: inquieta. Saunders fornece várias hipóteses (aliás, ele parece um mágico sempre a sacar hipóteses de leitura como se fossem coelhos, é certo que às vezes acaba por matar os coelhos — faz parte do espectáculo), mas obriguei-me a percorrer o meu próprio caminho. Como Saunders, e como fazem os polícias na televisão, escrevi num quadro a pista principal, ou seja, as situações em que Aliocha se admira com qualquer coisa: quando veste o casaco vermelho, quando descobre um sentimento recíproco por Ustínia, quando está estendido para morrer. Depois fiquei a olhar para estas linhas como para uma lebre morta, à espera.
Aliocha é o que se chama um pobre de espírito: simplório, ingénuo, tolo. É gozado pelos outros miúdos, explorado pela família e pelos patrões. O rapaz parece que não se importa e faz tudo o que o mandam fazer sempre com um sorriso na cara e sem queixas. Trabalha como uma besta e quando parece que vai sair desse círculo ao casar com a cozinheira Ustínia (seduzir vem do latim seducere que quer dizer «levar para o lado»), proíbem-no e ele, mais uma vez, acata a ordem. É uma situação extrema e injusta — como diz Saunders, revolta qualquer leitor contemporâneo.
O que sai fora dessa vida de rotina e labuta, os únicos pontos de fuga de Aliocha, são as admirações.
Primeiro admira-se com o casaquinho vermelho que compra com as gorgetas que foi juntando. Uma coisa material, um objecto que é inteiramente dele, que lhe foi sugerido por Ustínia e que ele comprou com o seu próprio dinheiro — dá-lhe uma sensação boa, digamos, de alegria?
Mais tarde é o interesse desinteressado de Ustínia ao qual ele responde em simetria (amor?) e que o entusiasma tanto que deseja casar.
Até aqui conseguimos compreender os espantos de Aliocha porque todos nós já os partilhámos alguma(s) vez(es) na vida.
A terceira admiração é a mais misteriosa. Tolstói reduziu tanto as palavras que não temos nada a que nos agarrar, daqui para a frente caminhamos no escuro:
Falou pouco. Só pedia água e não deixava de admirar qualquer coisa.
Admirou qualquer coisa, esticou-se e morreu.
Mas o escuro serve o propósito. Saunders pediu a todos os amigos russos ajuda para entender estas frases. Explicaram-lhe que Aliocha não pára de pedir para beber água e também que se admira constantemente com várias coisas diferentes e, na última linha, uma dessas coisas surpreendeu-o. Fui procurar o original russo (vivi alguns meses na Ucrânia, consigo ler as palavras uma a uma) e encontrei um texto completamente seco e belo:
Говорил он мало. Только просил пить и все чему-то удивлялся.
Удивился чему-то, потянулся и помер.
A questão da surpresa é descrita de forma quase simétrica, mas com recurso a dois verbos diferentes (удивлялся e удивился só diferem em duas letras e pode traduzir-se cada um dos verbos por «ficar surpreendido», mas o primeiro também significa «estranhar» ou «perguntar a si mesmo».
Não consigo propor uma variante de tradução, mas posso explicar até onde tudo isto me levou.
A terceira admiração de Aliocha passa pela sua consciência e faculdade de pensar. Pela primeira vez na vida, o rapaz está parado, saiu da roda que o obriga a esforços contínuos e tem tempo para refletir e é essa capacidade que ele estranha ou o leva a perguntar a si mesmo. E o que o surpreendeu foi a sua própria resposta — desta vez dita, não com as mãos nem com o coração como dizia as orações, mas com a cabeça, isto é, com o corpo todo. É como se Aliocha tivesse nascido de novo, íntegro e livre, nesse breve instante antes de morrer.
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