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No metro

Quando são surpreendidas sem bilhete ou com o passe caducado, algumas pessoas tentam escapar, outras protestam, outras ainda arranjam desculpas. Esta manhã, os seguranças surpreenderam um tipo sem bilhete que não tentou escapar, não protestou, não arranjou desculpas. O homem baixou a cabeça. Fixou um olhar submisso no chão. E pronto.

Comentários

c disse…
Os seguranças são habituais na linha A, às vezes apanho-os duas ou três vezes no mesmo dia, é impressionante. Há um tipo que quando eles chegam já tem o cartão de cidadão pronto para eles passarem a multa — tem muita pinta, parece um actor, o Harry Dean Stanton.

Não levanta ondas mas também não olha para o chão. Está tranquilo a cumprir uma tarefa burocrática.

Claro que não paga as multas.
Fiquei muito impressionado com a cena. Já vi muitas pessoas serem apanhadas pelos seguranças, mas este tipo parecia completamente derrotado. Resignado. Uma coisa tristíssima. Acho que os próprios seguranças estavam surpreendidos. Era um tipo de uns quarenta anos.
c disse…
A pobreza é uma humilhação e uma afronta. E suspeito que vai aumentar muito nos próximos anos. O fim do capitalismo não vai ser nada bonito.
Eh Lopes da Silva disse…
Às vezes passo por aqui, outras ando por ali, mas esta noite sonhei que andava na Linha E e que a inefável figura securitária da 2045 entrava na composição de pirilau em riste. Não ando de auriculares, nem desgasto o dedo em amolexes, perco-me em ocos entre estações, por isso estava distraído. Tocou-me um não sei quê de Bradbury, às cavalitas do Canetti em conversa com Arendt que lia Benjamin ao meu lado que dizia que o mundo é enfermo antes de se suicidar numa fronteira concelhia qualquer, e resolvi tanguear o pobre do moço. Confrontei-o, perguntei-lhe o queria, que legitimidade o assistia, tratando-o com a gravitas que os pobres odeiam, incapazes de perceber que são carne para canhão tanto nas trincheiras da Ucrânia como nas linhas de produção, usados comom bois na cadeia de produção do oblívio... Os sonhos são intervalos, fragmentos sem linearidade nem sentido, como isto ... A minha submissão ao sonho é igual à das filas à porta do forno, no balcão do SNS, na énesima selfie do comentador mor, na obscuridão que se solta da boca linda do Dom Manuel e se cola às remelas do par e à toleirice do DDT. Uma submissão genética ao rei, ao inquisidor, ao cacique, ao sacrificado prepúcio do menino jesus, e aos cheiros a grelo fementado de maria compadecidissima, enfim, uma condição de submissão à natureza vermicular sem fim à vista, por mais que me façam ... eu deixo.