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Um filme terrível

Se não me engano, as coisas começam a correr mal no segundo dia quando Jeanne coze demasiado as batatas para o jantar, ela deixa-as a cozer ao fim da tarde quando vai atender os clientes, mas desta vez cozeram demasiado e ela não sabe o que fazer com essas batatas, podia fazer puré, mas quarta-feira não é dia de comer puré (carne estufada com batatas cozidas à terça; panados de vitela com ervilhas, cenouras e batatas cozidas à quarta, rolo de carne à quinta), então leva a panela com as batatas para o quarto de banho talvez para as despejar na sanita mas não despeja e volta para a cozinha, hesita e acaba por as deitar no balde do lixo. A verdade é que desde aí tudo corre não só mal, mas cada vez pior: esquece-se de tapar a terrina da sala onde guarda o dinheiro e às vezes esquece-se de desligar os interruptores e tem de voltar atrás para os desligar, e depois não tem batatas que cheguem para o jantar e tem de ir à loja comprar um saco de batatas tão tarde a uma hora não habitual e o jantar não fica pronto a tempo e eles, ela e o filho, depois de comerem a sopa têm de esperar que as batatas acabem de cozer, e não consegue escrever a carta resposta ao convite da irmã para ir ao Canadá, tenta duas vezes mas não consegue, e esquece-se de ligar o rádio depois do jantar, e no dia seguinte esquece-se de apertar o segundo botão do roupão azul e parece que o relógio deixa de funcionar ou é ela que sai dos eixos porque começa a fazer as suas tarefas fora do tempo adequado e quando vai ao banco, o banco ainda está fechado e tem de esperar que o sapateiro abra porque também chegou demasiado cedo e depois o café com leite está estragado, ela pensa que é o leite mas é o café e ela tem de deitar tudo fora e fazer café fresco e quando sobra tempo não sabe o que fazer e senta-se na sala e é um perigo se ela se põe a pensar e mais tarde quando vai ao café, a mesa dela está ocupada e a empregada que a costuma servir já acabou o turno porque ela chegou demasiado tarde e ela já nem consegue beber o café, e não consegue encontrar um botão para o casaco do filho, um casaco quase como novo e é uma pena. Ela fica tão desorientada que começa a desempenhar as suas tarefas domésticas de modo diferente, com mais distracção e mais intensidade ao mesmo tempo, nota-se quando os pratos ficam com espuma do detergente e tem de voltar a passá-los por água e também quando engraxa os sapatos do filho e deixa cair a escova e sobretudo no plano em que descasca as batatas — esse plano é terrível. E vamos percebendo que essa desorientação é uma coisa tremendamente física. E é tão física que também a começamos a sentir. Sentimos uma ameaça e também sentimos como é perigoso alterar as rotinas pois as rotinas são rituais que devem ser cumpridos para que tudo se desenrole sempre da mesma forma, para que não seja necessário pensar em nada. Enfim, para aguentar certas coisas é preciso viver uma vida automatizada — sim, é disso que se trata. É sempre disso que se trata, Chantal. Quando fizeste o teu filme nem sabias como ele era terrível. Quando levaste as rotinas da tua mãe para a personagem de Jeanne não sabias que também levavas qualquer coisa na sombra e essa qualquer coisa passou para o filme. E ainda hoje ele é terrível. E vai ser sempre terrível.

Comentários

“Se não me engano, as coisas começam a correr mal quando Jeanne coze demasiado as batatas para o jantar.”

Acho que o primeiro sinal é imediatamente antes: o cabelo despenteado, depois de sair do quarto com o cliente, no segundo dia. O que terá acontecido? O encontro demora mais tempo do que o habitual (os encontros são “cronometrados”) e, por isso, as batatas, que estavam ao lume, cozem demasiado.
O que terá acontecido no quarto com o cliente do segundo dia?
Fiquei com a nítida sensação de que no encontro com o cliente do terceiro dia, ela sente qualquer coisa pelo homem e não é repulsa. E isso que ela sente é a prova definitiva de que toda aquela arquitectura fria, higiénica, asséptica em que ela assentara a sua vida, está a começar a ruir. No mesmo plano em que vemos a tesoura, também vemos a fotografia dela com o marido. Talvez o facto de, pela primeira vez, ela sentir qualquer coisa através do contacto físico com o homem, constitua a derradeira traição ao seu modo de vida presente e passado. Talvez no segundo dia, e na relação com o cliente, ela já tenha sido tocada por qualquer coisa. E é isso que talvez a tenha feito perder mais tempo dentro do quarto e estragar as batatas.
O mais certo é eu ter visto tudo mal.
c disse…
O filme é bom porque é ambíguo e permite muitas leituras e também ver mal, isso também é importante.

A minha leitura, por exemplo, está demasiado marcada pela tradução de “Uma família de Bruxelas” e considero muitas coisas que estão completamente fora de campo e se calhar estou a ir longe demais, mas porque não?

Quanto aos clientes, tens razão o segundo encontro pode ter desregulado o tempo de cada tarefa, e deixou-a despenteada, mas não creio que tenha acontecido mais nada de especial (o segundo é o viúvo tristonho). E mesmo no terceiro, o que aconteceu foi apenas dentro dela, baralhou-a completamente, deu cabo do seu dispositivo de defesa, mas mesmo nessa altura acho que ela não sente nada por aquele homem, mata-o apenas porque ele é uma testemunha. Mas lá está, as leituras dependem de nós.

E onde é que eles vão à noite, ela e o filho, quando saem depois de ouvir o sinal horário na rádio? O que é que achas?
As saídas à noite não é das coisas que mais me intriga no filme. Excepto a falta de luz das cenas. A Jeanne e o filho não passam de espectros. Só temos consciência da sua presença através do som dos sapatos na calçada. Aliás, não tinha pensado muito nisso antes de falares. Pareceram-me simples passeios higiénicos, voltas dos tristes. Mais uma "tarefa", cronometrada, no mecanismo diário. Aliás, há aquele diálogo, um dos raros, entre a Jeanne e o filho, no segundo dia: o filho pergunta se têm de sair porque jantaram um bocadinho mais tarde e ela limita-se a responder, com uma palavra seca, que não vai abrir uma excepção. Uma tentativa dela de tentar recuperar o tempo e pôr tudo outra vez na ordem. Não sei. agora que falas...
c disse…
O som do filme é formidável e a fotografia também. Gosto muito desses planos escuros.

Mas essas saídas à noite não podem ser passeios higiénicos, para mais está frio, o filho bem tenta escapar nessa noite em que jantam mais tarde, mas ela diz que não. Acho estes passeios muito intrigantes.
c disse…
Encontrei o filme no YouTube e voltei a vê-lo. De facto, como tu dizes, as coisas saem fora dos eixos logo depois do segundo encontro: ela sai do quarto despenteada e até se esquece de acender a luz, só quando o homem já vestiu o sobretudo e está pronto a sair é que se apercebe que estão às escuras. A partir daí nada corre bem. O encontro não demorou mais do que é habitual, ela é que costuma (pelo menos na véspera foi assim que fez e faz sentido) escorrer as batatas e deixá-las num lume brando só para se manterem quentes até ao jantar e depois é que vai tomar banho, mas desta vez desorientou-se e foi tomar banho antes e quando foi à cozinha as batatas já tinham cozido demais.

Da primeira vez que vi o filme, não achei o comportamento dela muito estranho até à cena das batatas. Mas já tinha acontecido qualquer coisa na cabeça dela. Ou então foram apenas algumas distracções, é o tipo de coisa que acontece ou pode acontecer quando estamos cansadas. Aquela situação dela não saber o que fazer com as batatas já me aconteceu uma coisa parecida, e é tão fácil as coisas descambarem.
Boa Noite disse…
Não é o mesmo suspense que o do Vertigo? Um mundo (inventado como todo outro mundo), frágil, está prestes a desabar.
Algo vai cair. Vemos durante todo o filme uma série de rachaduras, devemos saber que algo vai cair. E ao final algo cai
c disse…
Sim, é isso mesmo.