Avançar para o conteúdo principal

Desportos e divertimentos cinematográficos

Os filmes de Jacques Tati são documentos antropológicos que mostram o aspecto ridículo e risível da nossa Grande Época. Passado um tempo nem é preciso estar a vê-los para rirmos; é fácil — oh, tão fácil — encontrar à nossa volta réplicas desses gags. Geralmente é na rua que se apanham: prédios sofisticados ao lado de baldios, moradias modernaças, sons cómicos que se repetem, pequenas frases alfinetadas — às vezes até basta um cão rafeiro a correr ou um miúdo que suja a cara com açúcar ao comer um bolo. 

Quando estava a subir as escadas, com as minhas sapatilhas cambadas, para o Pap’açorda, percebi que não se tratava de um jantar de cerimónia, mas da hipótese (talvez única na minha vida) de entrar, nem que fosse só de raspão, na cena do restaurante de Playtime. A porta tinha vidro e nenhuns sinais de obras por terminar, mas o chefe de sala com o seu ar de segurança elegante, vestido de escuro, era um bom indício. Lá dentro o ambiente coincidia; não sei definir muito bem, qualquer coisa no ar. Não havia música, mas eu ouvi-a, e desconfio que a Fanny Ardant andou a dançar nas minhas costas não sei com quem. Os sinais continuavam a aparecer de forma muito subtil (as raparigas japonesas espantadas com a açorda, chamadas telefónicas, cochichos, os nossos amigos infiltrados, a mesa liberal lá do fundo). O serviço estava um bocado atrasado e confuso, os empregados discutiam junto ao balcão de apoio. Com a prática que tenho de filmes que deixam muitas coisas fora de campo imaginei uma enorme tensão na cozinha, facas a dançarem como espadas, um peixe a ser transportado dali para acolá. O momento mais burlesco veio perto do fim quando um rapaz bonito (outro que parece saído de um filme de Pasolini) com uma tigela enorme de inox encostada à anca chegou à nossa beira e atirou uma colherada de mousse de chocolate para um pratinho que estava no meio da mesa. Ele nem se deu conta da graça (em todos sentidos) do seu movimento. 

(Pequeno exercício de reportagem dedicado à Maria Capelo e ao José Neves que se despediram à porta do Nimas dizendo que à melhor trufa opunham uma lata de atum.)

Comentários