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A revolução do tigre

Talvez Cézanne seja o filme mais elucidativo de Huillet e Straub. Elucidativo no sentido concreto de trazer luz às obsessões e métodos de trabalho do pintor, mas também ao modo como os cineastas vêem a realidade e se afadigam para a registar em película, na sua integridade e não em aparências vãs.

Se olharmos com atenção (como não fizeram os tipos do Museu d'Orsay), conseguimos perceber o imenso labor envolvido neste filme.

Na escolha dos excertos das conversas com Joaquim Gasquet é visível mais do que concordância, uma afinidade participativa, digamos assim. Huillet e Straub são solidários praticantes com todas aquelas afirmações intensas sobre a atracção pela matéria e o desprezo por distracções de estilo ou interpretação. A austeridade de Cézanne é a austeridade de Huillet e Straub. (Não se enganem, porém, se o caminho é de pedras, o resultado é, pelo contrário, sumptuoso. Ricos e plenos, assim são os quadros de Cézanne e os filmes de Huillet e Straub. Como se diz das uvas quando os bagos estão cheios e atingiram o máximo de doçura e acidez. É a esse nível absoluto que trabalham.)

No terceiro plano, que nos mostra uma fotografia de Cézanne em Aix en Provence a pintar, tudo o que Danièle diz (e é importante também perceber que tinha de ser, só podia ser, a voz de Danièle a modular essas palavras fortes e não dispersivas, disparadas como flechas) expõe a dureza de um ofício que se quer levar ao limite: «A arte é uma harmonia paralela à natureza, se o pintor não se intrometer voluntariamente, compreenda-me bem. Toda a sua vontade deve ser silêncio. Deve fazer calar em si todas as vozes dos preconceitos. Deve esquecer, esquecer, fazer silêncio, ser um eco perfeito. Então, na sua placa sensível, toda a paisagem se inscreverá. Para a fixar na tela, para a exteriorizar, virá depois a técnica, mas uma técnica respeitosa, que também só deve obedecer, traduzir inconscientemente, de tal modo conhece a língua, o texto que decifra, os dois textos paralelos, a natureza vista e a natureza sentida que devem, ambas, amalgamar-se. A paisagem reflete-se, humaniza-se, pensa-se em mim. Objectivo-a, projecto-a, fixo-a na minha tela.»*

Este discurso oferece-nos ao mesmo tempo o pensamento profundo de Cézanne e a prática escrupulosa de Huillet e Straub. Talvez não haja nada mais difícil de filmar do que um quadro pois ele próprio é já um enquadramento e uma questão de cores, volumes e luz. Huillet e Straub decidiram filmar os próprios quadros (e não reproduções) nos museus onde estão expostos. Estudaram com minúcia o enquadramento e a luz: centraram o quadro quase ao milímetro, «o ponto de vista deve ser o centro absoluto, é o espaço que dá o enquadramento e mais nada», diz Straub; e tentaram que a luz fosse o mais homogénea possível em todas as tomadas, com uma temperatura de cor de 3200 K. Foram de museu em museu, passaram horas a preparar a filmagem para nos apresentarem os quadros e nada mais do que os quadros. Os dez planos são fixos, uns duram mais outros menos, por vezes ouvimos a voz de Cézanne, outras vezes silêncio e no caso das Grandes Baigneuses, o vento. Delicadamente, Huillet e Straub recuaram; estamos frente a frente — talvez como nunca — sozinhos com aquelas telas.

Esse recuo, porém (deve ser o seu lado japonês), dá-lhes balanço para um salto audacioso: colocar Empédocles em cena a falar directamente com Cézanne. Oh! o diálogo dos diálogos.

O himmlisch Licht! – es hatten michs
Die Menschen nicht gelehrt – schon lange, da
Mein sehnend Herz die Allebendige
Nicht finden konnte, da wandt ich mich zu dir,
Hing, wie die Pflanze dir mich anvertrauend,
In frommer Lust dir lange blindlings nach,
Denn schwer erkennt der Sterbliche die Reinen,
Doch als
der Geist mir blühte, wie du selber blühst,
Da kannt ich dich, da rief ich es: du lebst,
Und wie du heiter wandelst um die Sterblichen,
Und himmlischjugendlich den holden Schein
Von dir auf jedes eigen überstrahlst,
Daß alle deines Geistes Farbe tragen,
So ward auch mir das Leben zum Gedicht.


Isto não é fazer a revolução do tigre?






* Utilizo a versão do texto de João Botelho incluído no catálogo da Cinemateca Portuguesa. Podem ouvir tudo, aqui.

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