Uma vez que se tratou de uma encomenda, Onde jaz o teu sorriso? não devia ser o filme mais indicado para descobrir Pedro Costa.
É certo que ele definiu que a melhor forma — a única, aliás — de filmar Danièle Huillet e Jean-Marie Straub era a trabalhar; encontrou uma porta, uma janela e os sítios justos para pôr a câmara; e manteve-se extremamente atento e discreto. Enfim, fez a tal redução que, no fundo, é uma concentração.
Mesmo assim, é assombroso que um filme deste tipo, com constrangimentos e que esteve tão perto de não ser realizado, consiga apanhar tão profundamente não só as características mais inteiras e humanas de Huillet e Straub, mas também o lado mais escondido de Pedro Costa.
«Se houver uma longa paciência, estará carregada do seu contrário, (...) estará carregada de ternura e violência», diz Straub.
Comentários
-Matheus
Imagino, quer dizer, tento imaginar a coragem que ele precisou para enganar o medo e avançar. Como é que nos aproximámos daquilo ou daqueles que amamos muito? É preciso delicadeza e contenção e mais não sei o quê. Tudo isso está no filme e é belo e potente. Onde jaz o teu sorriso? é uma carta de amor de alguém tímido.
Mas não acho que os filmes mais recentes (ainda não vi As filhas do fogo) se tenham fechado num sistema pictórico, plástico. Parece-me que Pedro Costa está à procura das imagens que correspondam às pessoas que filma e como elas são deslumbrantes, as imagens tornam-se um bocado épicas.
Na altura da estreia de Vitalina Varela escrevi isto:
«Os filmes do Pedro Costa dão luta, podemos andar dias, meses, anos, a remoer em certos planos ou até mesmo em pormenores; uma palavra gritada, uma cruz que se apanha do chão. É tudo muito lúgubre, muito rico, muito condensado, muito misterioso. Trabalhamos sobre possibilidades ambíguas. Tentamos construir hipóteses de caminho. Com sorte, descobrimos que o céu é debaixo da terra.
Quando Vitalina sobe ao telhado, lembra as mulheres dos filmes Ford — Maureen O’Hara com os cabelos e têmpera do fogo. Essa é a primeira impressão. O reconhecimento de uma ligação dá algum consolo, mas depressa se esvai a segurança. O que o plano tem de vigoroso não é cinéfilo nem alivia. É no sentido contrário, por isso é preciso continuar a procurar mais fundo a origem da inquietação.
Talvez a tensão extraordinária dessa imagem venha do método de trabalho, do modo como a câmara responde a Vitalina. Como se todas as questões técnicas — ângulo, enquadramento, luz, sombra, vento — representassem o mesmo desespero que Vitalina sente. Não há qualquer folga entre forma e matéria. Esse entrosamento é fulgurante como um raio. A película projectada no escuro é o interior de Vitalina?»
Continuo a concordar com estas palavras, e também com as sensações que despertam ainda em mim.
É possível, no entanto, admito, que o meu julgamento esteja um pouco toldado. :)
E também, não achas que é preciso haver alguma folga entre a matéria e a forma - para que algo passe? Para que possamos colocar na obra algo de nós mesmos? Não quero ver os sentimentos, quero senti-los
Obrigado pela resposta!
Neste momento só consigo rebater o último: prefiro não colocar nada de mim nas obras e ver apenas os outros e os seus sentimentos. Aliás, gosto de fazer na sala de cinema o mesmo que faço no metro ou no autocarro ou no supermercado: ver os outros, ver como se movem ou falam, apanhar-lhes um sorriso, a irritação, ou um gesto qualquer banal.
Nem sei explicar isto, mas gosto cada vez mais de olhar para os outros — parecem-me sempre muito bonitos e muito interessantes. Depois, de facto, surgem em mim sentimentos, mas seguem outros caminhos.
O olhar recebe uma parte, a outra é ele que envia. A realidade fica no meio.
São coisas assim que se podem dizer.
"But nevertheless, the fact remained, it was almost impossible to dislike anyone if one looked at them." (V. Woolf)
Quando escrevi o primeiro comentário tinha uma passagem do Breton na cabeça. Depois acabei esquecendo dela. Fica no início do Nadja: "Mais importante do que... plus importantes encore que pour l'esprit la rencontre de certaines dispositions de choses m'apparaissent les dispositions d'un esprit à l'égard de certaines choses, ces deux sortes de dispositions régissant à elles seules toutes les formes de la sensibilité."
Mas eu falava de uma projecção, não gosto de me projectar no que vejo na tela, de me identificar com as personagens ou os actores, de sentir os sentimentos deles. São sempre um outro e é por isso que gosto tanto deles, porque estão fora de mim. Gosto do que está por fora. Detesto esta glorificação contemporânea do eu. O eu é um mecanismo que não nos larga, certo, mas deve ser o mais secreto possível.
Do segundo livro: Cette différence dans le style venait de ce que « le Bergotte » était avant tout quelque élément précieux et vrai, caché au cœur de chaque chose, puis extrait d'elle par ce grand écrivain grâce à son génie, extraction qui était le but du doux Chantre et non pas de faire du Bergotte. À vrai dire il en faisait malgré lui puisqu'il était Bergotte, et qu'en ce sens chaque nouvelle beauté de son œuvre était la petite quantité de Bergotte enfouie dans une chose et qu'il en avait tirée.
Também desaprovo dessa identificação; é também por isso que não acho que devemos ver os sentimentos, ou que possamos vê-los. Não podemos senão refazê-los em nós mesmos
Faz lembrar um frase/pensamento do António Reis, que o Pedro Costa cita: «Se olhas para alguma coisa e ela te retribui é porque está lá uma parte de ti.»
E por que é que não tivemos (eu) um professor como esse?
É possível gaguejar grandes coisas, como é possível discursar belas idiotices e mediocridades
(não sei se é a está porta que devo bater, mas gostava de saber se haverá uma segunda edição do primeiro volume do Alexander Kluge - que não consigo encontrar em lado nenhum.
Sei que o primeiro volume do Kluge está esgotado mas não sei se será reeditado para breve. Posso perguntar ao João Brito (da BCF).
Podes sempre tentar encontrá-lo nalguma biblioteca. Fiz uma pequena pesquisa e vi que há exemplares em Braga e Angra do Heroísmo. Eu também só tenho o segundo volume.