Talvez a característica mais notável da escrita de Thomas Bernhard seja o ritmo musical, a forma como as palavras correm, balançam, volteiam. Esse movimento desenfreado tem um objectivo muito preciso: deitar abaixo de modo implacável todas as falsidade dos seus conterrâneos, expôr todas as hipocrisias dos seres humanos, derrubar-se a si mesmo, não deixar nada de pé.
Mas Thomas Bernhard utiliza outras estratégias estilísticas igualmente potentes. Por exemplo, os objectos que surgem vezes sem conta ao longo dos seus monólogos, para além de conferirem materialidade ao discurso, acabam por ficar gravados na nossa memória, de tal forma que quase podemos jurar que chegámos a ver um ou outro.
A poltrona de orelhas onde o narrador de Derrubar árvores — uma irritação se senta logo no início é o objecto principal do romance. É nesta poltrona que está na penumbra, atrás da porta por onde entram os convidados do jantar artístico, todos esses escritores e músicos e actores que ele conheceu em tempos e de quem foi chegado mas que agora são para ele completamente desprezíveis, é aí que ele vê tudo e ouve tudo.
Bernhard deleita-se ainda a nomear e a introduzir no seu turbilhão: roupas (os casacos ingleses que os Auersberger usam para ir às compras no centro de Viena, o fato de enterro que o narrador leva ao enterro de Joana mas também ao jantar artístico, os vestidos de estilo indiano ou egípcio ou espanhol ou romano de Joana, o vestido amarelo da Auersberger, o apropriado Wetterfleck cinzento da merceeira de Kilb em oposição aos casacos de peles entretanto encharcados dos amigos citadinos da Joana, etc.), comidas (o gulasch da Eiserne Hand ou a sopa de batata, o verdadeiro lúcio do lago Balaton cozido e servido com molho de alcaparras e o Mohr im Hemd do jantar artístico), mobiliário (as cadeiras estilo império, os móveis josefinos ou do Biedermeier), e até a peruca da sogra do Auersberger e o saco de plástico onde meteram o corpo de Joana.
Não menos que a música, a presença constante destes objectos vulgares confere à escrita de Bernhard uma enorme vivacidade, impede que o seu discurso caia na abstracção do pensamento. De facto, em Derrubar árvores — uma irritação as palavras estão tão coladas às coisas concretas e têm um tal ritmo que, creio, podemos dizer que se trata de um verdadeiro romance audiovisual: sentados na nossa poltrona de orelhas, ouvimos e vemos tudo.
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