O título do filme é, por si só, uma estrutura polissémica. Tem a ver com o processo de impressão directa dos negativos fotográficos em que dois corpos em bruto se tocam, mas também pode ser alguém infiltrado dentro de um grupo político, a secção de classificados dos jornais, ou até uma composição de Karlheinz Stockhausen.
Contactos deve ser visto junto com Duración. Não só por serem os filmes mais radicais de Paulino Viota, mas também porque há uma ligação entre eles que torna a projecção conjunta mais arrojada, tipo 1+1=11. O tempo em Duración e o espaço em Contactos (que, perante os nossos olhos contemplativos, se converte em tempo) são simultaneamente formas puras da intuição a partir das quais é possível começar a perceber o mundo que nos rodeia, mas também matéria cinematográfica que nos permite compreender (principalmente no sentido de abranger) o cinema. Kant e Marx em contraponto. Avante!
Quando Paulino Viota diz que Contactos foi feito contra o público (na verdade, já não diz bem isso porque o seu pensamento é extremamente dinâmico), é preciso entender que não se trata de um obstáculo, mas de uma provocação. O filme (rodado em 1970, convém não esquecer) é um movimento selvagem que vem contra nós e nos abana e nos obriga a ver as coisas como são, sem os amortecimentos dos lugares comuns ou das realidades postiças. No conteúdo e na forma (de propósito, ao contrário do cinema clássico, um pouco desajustados um do outro, mas ambos fortíssimos e muito concentrados), Contactos é, antes de mais, um filme profundamente racional, consciente que é um filme e, logo a seguir, que é um filme revolucionário (aí está, outra vez, o movimento de um objecto numa curva fechada). Paulino quer expôr a forma da obra e a matéria-prima de onde ela saiu (como Oteiza nas suas esculturas). Assim, desde o primeiro plano temos uma sensação de opressão, de angústia que descreve essa vigilância silenciosa (a arte está a entrar numa zona de silencio, Oteiza de novo) e quotidiana dos regimes ditatoriais: Franquismo, mas também Estado Novo pois reconhecemos facilmente aquele mal estar permanente que tolheu (e por vezes continua a tolher, ai de nós!) as vidas dos portugueses durante tantos anos. As portas (quase sempre fechadas ou apenas entreabertas) e as paredes (que comprimem tanto como as margens do rio de B.B.) são um fardo que as personagens têm de carregar, diz Paulino.
Tina (a maravilhosa Guadalupe G. Güemes que circula livremente e com imensa graça nos filmes de Paulino Viota) chega à Pensão Villanueva, a câmara está ao fundo de um corredor apertado, em frente à porta da rua, fechada — não dá para não nos apercebermos do espaço (sempre tão exíguo)*. Ela fica com um dos quartos, a dona da pensão pede-lhe um documento de identificação para a ficha da polícia. No fim, antes de sair para dar uma volta pela zona quando a mulher lhe diz que ao princípio custa estar longe de casa, Tina responde que não, pelo contrário. Os dados estão lançados e seguem paralelos na forma e conteúdo. Oteiza outra vez? Sim: Para devolver à vida o espectador perdido, era necessário pôr em jogo a «ferramenta espiritual» do cinema para captar «este homem que foge e que deve ser ajudado, precisamente dentro do cinema, pela narrativa cinematográfica». Aí vamos nós.
Javier não tem a mesmo têmpora. Apesar de ler o Anti-Dühring, de Engels, tudo lhe pesa e aborrece: a exploração do trabalho, o cansaço, o leite que servem na pensão, as rotinas dos camaradas e até a própria clandestinidade. Só por um breve momento encontramos algum ânimo em Javier — e não é quando beija Tina, mas quando fixa a câmara no fim do filme e parece que nos pergunta: e agora?
Breve anotação para falar de contabilidade: Contactos custou 25.000 pesetas. Foi a mãe de Viota que investiu o dinheiro — é a ela que temos de agradecer a epifania. Paulino tinha então 22 anos. No total, o filme tem 33 planos-sequências filmados, quase sempre com movimentos laterais, a partir de cinco pontos de vista: dois na pensão, um no quarto do amante, um no restaurante onde Tina e Javier trabalham e um na rua. O espaço é repetido incessantemente, assim como algumas das acções (simetrias, pois claro). A montagem é uma coisa imanente. Toda a estrutura é visível. Estamos na barriga de Moby Dick.
Por fim: Contactos é um filme áspero, muito calado, misterioso e necessário. É preciso revê-lo para estudar as suas múltiplas ressonâncias.
Podem começar o processo na próxima quinta-feira, dia 5 de setembro, às 19h00, na Cinemateca (em associação com os Encontros de Cinema do Fundão). Sessão apresentada por Manuel Asín.
* A geometria faz lembrar certos enquadramentos de Ozu.
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