Avançar para o conteúdo principal

Maldição dos mortos

O Andy Rector contou-me que numa das sessões da Cinemateca, Tag Gallagher perguntou ao público se sabiam porque é que o último plano de O homem que matou Liberty Valance é tão tremendamente triste e trágico. Ele próprio não conseguiu ainda encontrar uma resposta clara. Acrescentou que era como se estivéssemos no comboio da civilização, mas não era bem isso que queríamos.

É fácil argumentar que todo o filme tem essa amargura porque nos mostra que a democracia americana é construída sobre actos não muito dignos. No entanto, acordei de noite e isto veio-me de novo à cabeça e tomou conta da insónia. A minha resposta incorria num erro básico de perspectiva: uma vez que tinha abordado o filme de um ponto de vista político, não via o resto. Mas o comentário de Tag conseguiu desinquietar-me e obrigou-me a repensar.

Não se trata apenas daquele plano, creio, é todo um bloco que começa quando Stoddard fecha a porta do barraco transformado em câmara ardente e vê a flor de cacto sobre o caixão de Tom Doniphon. Desconfia que foi a mulher que a ofereceu ao antigo namorado e percebe o alcance do gesto . Logo a seguir, já sentados no comboio de regresso a Washington*, pergunta a Hallie se quer voltar a viver naquela terra, como se ainda fosse possível corrigir os erros acumulados. Ela comove-se e ele continua o diálogo e pergunta-lhe abertamente quem pôs a flor sobre o caixão e é nessa altura que vemos no seu rosto como a suspeita o atormenta e como a tristeza alastra sobre esse amor frustado (tão intenso como os de Manoel de Oliveira). Parece que Stoddard compreende pela primeira vez que passou anos sem ouvir a mulher.

No fundo, esta viagem a Shinbone reavivou tudo o que estava escondido e é duplamente funesta. O velho senador dá-se conta que não levou a vida honrada pela qual tanto lutou na juventude quando lavava pratos com um avental enquanto lia com furor livros de direito. Deixou-se crescer preso a um mito que o diminuiu; limitou-se a seguir a carreira que lhe foi destinada cheia de compromissos e abdicações. Descurou o amor de Hallie e falhou a si mesmo. Já não tem muitas ilusões, sabe que o que foi perdido, perdido está. 

Quando o empregado do comboio lhe diz orgulhosamente que nada é demais para o homem que matou Liberty Valance é como se esfregasse sal na ferida e ele nem sequer consegue acender o cachimbo. A amargura que atravessa todo o seu ser é tanta e tão profunda que mete medo. No último plano vemos o comboio a afastar-se, e só um tipo como John Ford podia fazer um final assim, em que um comboio a rasgar a paisagem não significa nada e significa tudo e deixa-nos o coração a palpitar.


* Esse plano convoca o fim de Relações de Classes: Karl Rossman e Giacomo estão sentados no comboio nos lugares em frente. A viagem que os há-de levar ao Teatro Natural de Oklahoma é o negativo d' O homem que matou Liberty Valance.

Comentários