Nos seus filmes, Ford não nos fala do oeste real, mas faz um comentário em segundo grau do mito popular do oeste. Os seus filmes são um mito ao quadrado. Não se trata de converter em mito o Oeste real, mas, partindo de um mito popular, conferir-lhe dignidade estética, por assim dizer; refiná-lo, poli-lo, elevá-lo ao mais alto grau, destilá-lo, o que se quiser; pôr esse mito de andar por casa num pedestal, conseguir disfrutar dele ao máximo. Talvez a sua atitude não seja muito diferente da dos grandes compositores quando fazem obras a partir do folklore. Ainda para mais tendo em conta que, para Ford, o principal é a música. Para ele, um mito é sobretudo musicalidade. E também arte plástica e poesia, como já assinalamos em relação à «trilogia». Claro que Ford não é um homem da cultura, como esses grandes compositores, mas o que acontece é que quando querem fazer alta cultura com Buffalo Bill, sai um filme de Altman.
Ford é um apaixonado da cultura popular, como têm de ser todos os que gostam de cinema. As suas personagens são muito verdadeiras não porque tenham complexidades psicológicas, que seguramente ele detestava e achava que não eram mais do que desculpas, mas porque têm tanta riqueza de carácter que se parecem com as pessoas que conhecemos. Parecem reais.
Penso que não nos vemos a nós mesmos nas personagens de Ford, porque que em geral gostamos muito de imaginar que temos muita psicologia; mas nessas personagens sim, vemos os outros, as pessoas que nos rodeiam. Porque o que nos interessa nos outros não é a sua psicologia (já nos basta a nossa), mas a sua «graça» (em todos os sentidos da palavra), a sua personalidade, e as personagens de Ford estão cheios de graça.
Simetrias — os 5 actos nos filmes de John Ford, de Paulino Viota (páginas 90/91).
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