Que espécie de linguagem é a linguagem de Strauch? O que hei-de fazer com as suas lascas de pensamento? O que a princípio me parecia desarticulado, desconexo, possui os seus «nexos realmente espantosos»; no seu todo, é uma aterradora transfusão de palavras para o mundo, para as pessoas, «um processo impiedoso movido contra a estupidez», para o dizer com as suas palavras, «uma ininterrupta cadência de fundo que merece regenerar-se». Como anotar? Que tipo de notas? Até que ponto algo de esquemático, de maneira sistemática? Estas irrupções abatem-se sobre mim como derrocadas de pedras. De repente, o que ele está a dizer começa outra vez a partir-se face ao grito explosivo do ridículo que engendra para si próprio «e para o mundo». A linguagem de Strauch é uma linguagem do músculo do coração, que «palpita contra as pulsações do cérebro», malévola. É uma auto-humilhação rítmica cativa da «viga crepitante do seu próprio ouvido interno». As suas ideias, os seus ardis, estão basicamente de acordo com o ladrar dos cães para que ele me chamou a atenção logo no início, com o qual me «pulverizou no ar». Será isso ainda uma linguagem? Sim, é o fundo duplo da linguagem, o inferno e o céu da linguagem, é a rebelião dos rios, «as narinas fumegantes de palavras de todos os cérebros, que estão desesperados sem limites e sem vergonha». Às vezes recita um poema, para logo a seguir o fazer em pedaços, para o reconfigurar numa «central eléctrica», «encasernamento do mundo do pensamento das tribos sem palavras, que é preciso educar», diz. «O mundo é um mundo de recrutas, é preciso dar cabo deles, é preciso ensiná-los a disparar e a parar de disparar.» Arranca as palavras de si próprio como de um terreno pantanoso. E ao arrancar assim as palavras corta-se e fica a sangrar.
Geada, de Thomas Bernhard. Tradução de Bruno C. Duarte. Dois Dias edições, 2022.
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