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Coleccionismo dissoluto

Aplico os pensamentos e as palavras de Cioran a quase tudo; só me falta começar a debitar diatribes cioranescas nas compras no mercado, mas é uma questão de tempo. Neste gesto, porém, que fique claro, assemelho-me mais àquelas velhas que recolhem os gatos que encontram no caminho ou amontoam tralhas em casa do que a uma estudiosa assertiva.

Estranho à transcendência

O claro-escuro holandês, com todo o seu mistério, é estranho à transcendência. É possível que a melancolia seja refractária ao absoluto. Emil Cioran, Lágrimas e Santos. (Podia aplicar este pensamento de Cioran aos filmes de Ozu. Em vez de  o   claro-escuro holandês ,  os planos geométricos de Ozu …)

O último plano de "O Gosto do Saké"

 
Na sua origem etimológica perspectiva deriva do latim perspicere entendido no sentido de "ver claramente", que é por sua vez a tradução do termo grego optiké cujo significado se define pela ciência em si.  O desejo do Desenho, Casa da Cerca, Centro de arte contemporânea, Almada, 1995.

Sonho

Instalaram uma prótese na perna esquerda do meu pai. O médico disse que era a única solução para ele conseguir recuperar alguma da mobilidade que perdeu nos últimos anos. Fui visitá-lo ao hospital. Contou-me que de noite tinha tido um sonho muito bonito. No sonho, corria e saltava como se fosse um miúdo outra vez.

Na parede da Capela do Senhor do Olho Vivo, na Rua Antero de Quental, substituíram a centenária caixa de esmolas em ferro por uma coisa de plástico branco. A fé do pároco na solidez do plástico e, sobretudo, na integridade do próximo é muito impressionante. Talvez a tão apregoada crise de fé da Igreja tenha sido manifestamente exagerada.

Linha A

Os livros de Dostoiévski tornaram-se mais políticos. “A Submissa” (a tradução é macia, mas continuo a embirrar com o título) é pura política do desespero . O metro não devia sair do subsolo.

A linha

Estação da Trindade, fim de tarde. A linha do metro divide os passageiros por classe. No Cais 1, os passageiros que regressam aos condomínios e hotéis da Boavista, Matosinhos, Maia e Vila do Conde: funcionários públicos, professores, estudantes altivos de economia, casais de «turistas seniores», arquitectos vestidos à moda, jovens empreendedores ao telefone. No Cais 2, os passageiros que vivem em Campanhã, Rio Tinto, Gondomar ou Fânzeres: trabalhadores do comércio e da restauração, empregadas domésticas, operários, crianças sozinhas vindas da escola, pensionistas e jogadores de cartas dos bancos de jardim.

Alívio rápido

Na estação de Faria Guimarães, um cartaz publicitário com a imagem de um medicamento. Da janela do metro, leio num relance: «Para o alívio rápido da alegria.» Leio com mais atenção: «Para o alívio rápido da alergia.» O metro retoma a marcha. Caracol fanhoso e tristonho.

Uma certa alma

Devia escrever um pequeno texto sobre O Gosto do Saké  mas, contando com os comentários laterais e as observações geométricas, ultrapassei os 7000 caracteres. Deixei-me levar; é demasiado para as minhas capacidades e hábitos (até parece que estou a pagar uma dívida com juros elevados).  O que vale é que no último parágrafo acho que derrotei aquela teoria do estilo transcendental em Ozu e isso merece uma boa comemoração.

Depois do fim dos contos de fadas

(...) Tendo em conta que vários escritores e personagens literárias tiveram profissões semelhantes, vamos chamar-lhe R. W.  (...) será que R. W. só conseguia escrever disfarçando que estava a escrever, enganando-se a si mesmo e à linguagem, a ponto de nem a linguagem nem ele já acreditarem que escrevia? (...) Com esta solução, talvez também R. W. estivesse a empurrar o sentido para longe, em vez de o tornar explícito. Talvez temesse ou desprezasse o sentido. Sentir-se-ia mais próximo das coisas sem sentido ou condenado a elas? Só sabemos que já não queria copiar nem passar coisas a limpo. R. W. não servia para o que os outros queriam — e «aquilo que os outros querem» é uma boa definição de «sentido».  (...) Walter Benjamin — chamemos-lhe W. B. — comparou as personagens de R. W. com as figuras dos contos de fadas, porém depois do fim dos contos de fadas: já passaram por todas as metamorfoses e todos os sofrimentos e percursos que tiveram de cumprir dentro da lógica dos contos d...

Entretanto, vou-me divertindo

- (...) Sou católico, tirando o baptismo. - É muito simples - disse eu - trate de ser baptizado. O baptismo é um sacramento que qualquer um lhe pode ministrar: homem, mulher, judeu, protestante, budista, maometano. - Eu sei - disse Fernisoun -, mas só quero servir-me dele mais tarde. Entretanto, vou-me divertindo. - Ah! Ah! O efeito do baptismo é apagar todos os pecados. Como só se pode utilizá-lo uma única vez, você quer adiar o mais possível esse momento. - Aí está. Já não espero o Messias, mas apenas o Baptismo. Esta esperança dá-me toda a alegria que se pode ter. Vivo plenamente. Divirto-me soberbamente. Roubo, mato, esventro mulheres, violo sepulturas, mas irei para o paraíso pois espero o Baptismo e não será dito o kadisch na hora da minha morte. Guillaume Apollinaire, O Heresiarca e C.ª . Tradução de José Carlos Rodrigues.

Se tem cauda é o diabo

Depois de analisar profundamente a imagem, cheguei à conclusão que se trata de uma desgarrada. Eu e o Ventura, numa voz tão baixa que não se percebe nada.  Agradecimentos à  Linha de Sombra  por enquadramentos tão generosos.

Paredes instagramáveis para influenciadores do século XX

Film , de Samuel Beckett e Alan Schneider, e Un Chant D'Amour , de Jean Genet.

Deus está em casa e pode ouvir

Uma mulher e um miúdo pequeno estão sentados nas escadas da Igreja da Lapa, à espera do autocarro. O miúdo brinca com uma máscara cirúrgica. Nisto, um golpe de vento arranca-lhe a máscara da mão e atira-a para longe. O miúdo grita «ai, caralho, a minha máscara» e corre atrás dela. A mãe repreende-o num cerrado sotaque tripeiro: «Não digas asneiras à frente da igreja, grande morcão!»