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Mensagens

A mostrar mensagens de agosto, 2014

Joyce

Como é sabido, o Sr. Joyce requisitava todos os dias os menus dos principais restaurantes de Dublin. Só conseguia escrever depois de se assegurar que, naquele momento, nenhum deles estava a servir “sopa de legumes com ovos de codorniz”. E qual é o interesse disto? Nenhum.
Em 1723, J. D. Zelenka compôs, em Praga, uma pequena peça a que deu o título de "Hipocondrie". A explicação para este título tão curioso é um mistério e deixemos que continue a sê-lo. Respeitemos, acatemos e preservemos sempre os mistérios, que são o sal da vida e da arte.
[Daniil Harms] sofria de uma espécie de dislexia – nesse estado psíquico, a pessoa não é organicamente capaz de escrever de forma correta com lógica, mesmo com um intelecto absolutamente saudável. Harms transformou isso em princípio criativo e como que afirmou que o erro achado em seu texto é na verdade “estilo” individual. Em outras palavras, pediu que se interpretasse o erro como intenção criativa. Valéri Sájin, a propósito de Daniil Harms.

E, assim, muito simplesmente, decidiram evaporar-se

É uma história que parece inventada, mas não é. Houve um ano em que os narradores entraram em greve. Todos os narradores: homodiegéticos, heterodiegéticos, autodiegéticos e mais as suas subcategorias (sigo aqui a terminologia de Gérard Genette, também usada por Ann Rigney). A greve não visava nenhum objectivo, digamos, político. Os narradores apenas estavam cansados da literatura. Cansados de contar histórias que pertenciam a outros. Reivindicavam o direito à ausência, ao silêncio e ao esquecimento. E, assim, muito simplesmente, decidiram evaporar-se. E, de facto, evaporaram-se. Ora, ninguém estava preparado para uma situação daquelas. O fenómeno desafiava a análise segundo qualquer fórmula de compêndio e foi descrita pelo grande William Tovey como sendo de uma gravidade sem paralelo na literatura anterior ou posterior (estou a citar sem aspas). Milhares e milhares de histórias, e nem um só narrador para as contar. Nesse ano, muitos livros ficaram por terminar. Os editores, que norma...

Cinfães do Douro, 15 de Agosto, dia da Assunção de Nossa Senhora

Diálogo entre sinos, às sete da manhã Sino da Capela de Montão: - Tem lêndeas, tem lêndeas, tem lêndeas. Sino da Capela de Vila Nova: - Eu tiro-tas, eu tiro-tas, eu tiro-tas. Sino da Igreja de Freigil: - Com quê? Com quê? Com quê? Sino da Igreja de Oliveira: - Com um martelão, com um martelão, com um martelão.
Cinfães do Douro, 12 de Agosto, dia de S. Euplúsio, mártir Após alguns dias vazios, finalmente tive uma ideia: fundar um jornal de letras, artes e ideias impresso em folhas de couve.

O famoso conto de Bernd Alois Petanka

As lendas que rodeiam o famoso conto de Bernd Alois Petanka são bastante inofensivas. Helge Argüelles relata que a célebre cantora Malibran, ao lê-lo pela primeira vez, foi atacada por convulsões e teve de ser transportada para o quarto. Outra história diz-nos que um veterano da Velha Guarda de Napoleão, quando leu a primeira frase, se pôs de um pulo em pé e exclamou: “C’est l’Empereur!” Há ainda uma outra história curiosa segundo a qual o próprio Ivan Goncharov teria tentado uma vez “dançar” enquanto lia o texto em voz alta, acompanhado ao piano por Liszt. O único inconveniente destas histórias é o de nada relatarem de importante a propósito do famoso conto.

A Primavera na Rússia

Bees are important in Tolstoy. They inspire one of the most important similes in War and Peace , and also feature several times in Anna Karenina , often at crucial moments. (...) Having written a biography a few years ago, I knew that Tolstoy had developed a typically obsessive but short-lived passion for beekeeping in the 1860s. Rosamund Bartlett, On Translating Tolstoy .

Doenças terríveis

Ritmos, rimas, assonâncias, aliterações, paronomásias, anáforas, metonímias, catacreses, zeugmas, polissíndetos, onomatopeias, assíndetos, silepses e outras doenças terríveis. (Pausa para fungar e olhar pomposamente para o leitor.) Não admira que a maioria dos grandes poetas morra cedo.

Dois poetas sentam-se a uma mesa de café

Dois poetas sentam-se a uma mesa de café. Um de mãos nos bolsos, o outro segurando um saco de supermercado. Quando as palavras começam a cair do tecto, o primeiro recolhe as que lhe interessam, abrindo simplesmente a boca. O segundo é como um cego, não distingue nada, e lança-se furiosamente ao ar, ora agitando o saco, ora gritando como um desalmado, na esperança de apanhar algumas palavras com valor. Estão a ver o que eu quero dizer? Estão a ver como isto vai acabar?
Medo (da morte) não. Nem gosto de dizer essas coisas, porque não gosto de contar valentia por antecipação. Pode ser que, na hora, eu até me apavore. Mas não tenho medo. Só tenho medo de morrer sem terminar um livro que eu esteja escrevendo. Ariano Suassuna, em entrevista ao "Globo", 4 de Agosto de 2013.