Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2017

Trabalhos de demolição

A memória é uma substância inteiramente maleável. Qualquer coisa elástica, que pode ser mudada, manipulada, apagada, reconstruída, uma e outra vez, vezes sem conta, até ao limite do inumano. Nos primeiros planos de The First Shot,  de Federico Francioni e Yan Cheng, a câmara concentra-se nos movimentos de uma máquina de demolição, empenhada em desmantelar um bairro de casas de tijolo, em Pequim. A facilidade com que derruba paredes, telhados, casas inteiras onde viveram sucessivas gerações, é a mesma com que apagamos certos elementos da nossa memória. As antigas casas de tijolo desaparecem para dar lugar a arranha-céus. Depois da demolição, há velhos que revolvem silenciosamente os escombros em busca de tijolos que possam ser reutilizados. Uma espécie de melancólica arqueologia, que só pode ser desempenhada por velhos, os únicos que conhecem o valor daqueles tijolos e a maneira minuciosa como se combinam para erguer uma casa. Os velhos respigadores transformam-se assim nos guardiõ

Il faut nous donner votre argent...

Com a minha carta de bacharel num canudo, trepei enfim um dia para o alto da Diligência, dizendo adeus às veigas do Mondego. Justamente nesse mesmo tejadilho ia um francês, um commis-voyageur. Era um colosso, de lunetas, duro e brusco, com um queixo maciço de cavalo, que, à maneira que o coche rolava, ia lançando através dos vidros defumados um olhar às terras de lavoura, aos vinhedos, aos pomares, como se os sopesasse e lhes calculasse o valor, torrão a torrão. Não sei porquê, deu-me a impressão de um agiota, estudando as terras dum morgado arruinado. Conversei com este animal; ele pareceu surpreendido da minha facilidade no francês, do meu conhecimento do francês, da política de França, da literatura de França. De facto, eu conhecia romancistas, filósofos franceses, que ele ignorava. E ainda recordo o tom de alta protecção, com que me disse, batendo-me no ombro, enquanto nós rolávamos na estrada, vendo em baixo, no vale, o mosteiro da Batalha:  - Vous avez raison, il faut aimer la F

"145 poemas", de Kaváfis

Este livro começou a ser escrito em 1896, demorou vários anos a ser traduzido pelo Manuel Resende , e é apresentado no próximo sábado , 18 de Novembro, às 18h30, na Casa Fernando Pessoa , em Lisboa. É a mais bela e perfeita versão dos poemas de Konstantinos Kaváfis em língua portuguesa. A edição é da Flop .

N.º 10 da Rua Lepsius

[Konstantinos Kaváfis] vivia desde 1907 no segundo andar do n.º 10 da Rua Lepsius, [em Alexandra], microcosmo onde o seu quotidiano se circunscrevia. «Onde poderia eu viver melhor?» Confidenciou um dia. «No andar por de baixo do meu, o bordel trata da carne. Do outro lado da rua há a igreja que perdoa os pecados. E depois, mais adiante, há o hospital, onde morremos.» Mário Avelar.

Quatro breves notas sobre O Cavalo de Turim

Não havia horizonte, salvo não haver horizonte. F. Pessoa, A estrada do esquecimento. 1) Endgame Se Béla Tarr decidisse filmar Endgame , de Samuel Beckett, talvez o resultado não fosse muito diferente de O Cavalo de Turim . Uma casa isolada numa planície quase deserta. Dois personagens ali encerrados, um homem e uma mulher, pai e filha. Uma porta e uma janela. O que sabemos do exterior resume-se quase exclusivamente ao que é possível observar a partir dessa janela. Dias e noites sucedendo-se, aparentemente iguais entre si. HAMM (...) Como está tudo? CLOV Como está tudo? Numa palavra? É o que queres saber? Um segundo (aponta o óculo para fora [da janela], observa, baixa o óculo, volta-se para Hamm.) Mortibus. Samuel Beckett, Fim de partida . 2) Deus criou o mundo em seis dias, o mesmo tempo que demorou a destruí-lo A narrativa de O Cavalo de Turim decorre em seis dias, ao longo dos quais cada coisa se vai apagando, numa espécie de lento e inexplicável desmaio.

1971-1986

Sequência de abertura de Morte em Veneza , de Luchino Visconti, 1971. Em fundo, música de Mahler: Adagietto,  da Sinfonia n.º 5 . Sequência de abertura de À flor do mar, de João César Monteiro, 1986. Em fundo, música de Bach, Adagio ma non tanto,  da Sonata n.º 3 em mi menor, BWV 1016 .

Princípios essenciais de geografia

O livro começa com esta frase: Ao contrário do que acontece em certas obras de ficção, tudo o que aqui se diz é absolutamente verdade. Tudo o que aqui está, ou existe, ou existiu. Um pouco mais à frente, lê-se o seguinte: É por isso que não posso entreter-vos com uma história que seria, a um tempo, empolgante, obscura e dramática. Juntando as duas frases, obtemos o programa: Ao contrário do que acontece em certas obras de ficção, tudo o que aqui se diz é absolutamente verdade. Tudo o que aqui está, ou existe, ou existiu. É por isso que não posso entreter-vos com uma história que seria, a um tempo, empolgante, obscura e dramática. A antiga e sempiterna fronteira entre realidade e ficção. O que faz ela aqui, de novo, quando sabemos que essa linha, tão vaga como um castelo no ar, é um truque de ilusão? A resposta reside justamente no facto de ser o primeiro truque da literatura. O grande truque a partir do qual se geram todos os outros. Um bom autor coloca, desde logo, as cart