Avançar para o conteúdo principal

Horas e horas à frente de papel em branco

Tentei, pela centésima vez na vida, trabalhar, criar algo de belo, de duradouro. Queria perturbar a alma dos humanos, fazê-los sentirem-se melhores ou piores, mas o meu esforço evaporou-se no vazio.
Sentei-me horas e horas à frente de papel em branco, imaginei que em virtude de um pacto com um demónio tutelar seria capaz de escrever algo semelhante à Divina Comédia, e quando a minha pequena e dourada alegria atingia o limite onde eu supunha principiar a orla da inspiração, escrevia, redigia duas ou três linhas, e acabava depois por deixar, desalentado, a lapiseira no cinzeiro.
Convenci-me de que era impossível trabalhar de dia e obter assim os benefícios da inspiração, e recorri aos favores da noite.
Reparei que no meu quarto abundavam livros, formosos quadros, selectas comodidades e, não sei porquê, ocorreu-me que a inspiração precisa, para se manifestar, da monástica solidão de uma cela, do silêncio conventual de uma cartuxa perdida nas montanhas, e então mandei substituir os vidros das janelas por vitraux que representavam uma paisagem feudal, e substituí a confortável poltrona norte-americana por um rígido banquinho colonial, a secretária por uma severa mesa antiga, e os candeeiros eléctricos por um candelabro de ferro forjado, e acendi a vela.
Mas nem o candelabro, nem a mesa, nem a vela me concederam a inspiração de que carecia, e o banquinho colonial agravou as hemorróidas de que padecia, toleráveis no enchumaço da poltrona norte-americana.

Roberto Arlt, Escritor fracassado. Tradução de Miguel Filipe Mochila.

Comentários