1930
Engelmann disse-me que em casa, ao remexer uma gaveta cheia de manuscritos seus, estes lhe parecem tão excelentes que pensa que valeria a pena dá-los a conhecer a outras pessoas. (Diz que o mesmo se passa ao ler cartas dos seus parentes já falecidos.) Mas quando pensa em publicar uma selecção desses manuscritos, as coisas perdem o seu encanto e valor, o projecto toma-se impossível. Eu disse que tal se assemelhava ao caso seguinte: nada há de mais extraordinário do que ver um homem, que pensa não estar a ser observado, a levar a cabo uma actividade vulgar e muito simples. Imaginemos um teatro; o pano sobe e vemos um homem sozinho num quarto, a andar para a frente e para trás a acender um cigarro, a sentar-se, etc., de modo que, subitamente, estamos a observar um ser humano do exterior, de um modo como, normalmente, nunca podemos observar-nos a nós mesmos; seria como observar com os nossos próprios olhos um capítulo de uma biografia — isto poderia, sem dúvida, ser ao mesmo tempo inquietante e maravilhoso. Estaríamos a observar algo mais admirável do que qualquer coisa que um dramaturgo pudesse arranjar para ser representado ou dito num palco: a própria vida. — Mas isso é o que vemos todos os dias, sem que tal nos provoque a mais ligeira impressão! Sim, mas não o vemos nessa perspectiva. — Bem, quando Engelmann olha para o que escreveu e o acha extraordinário (embora não se preocupe com a publicação de qualquer dos seus escritos), vê a sua vida como uma obra de arte feita por Deus e, como tal, merecendo decerto ser contemplada assim como qualquer vida e tudo o mais. Mas só o artista é capaz de apresentar assim uma coisa individual de modo que ela nos apareça como uma obra de arte; é verdade que esses manuscritos perderiam o seu valor se fossem examinados um a um e, especialmente, se fossem olhados desinteressadamente, isto é, por alguém que não sente por eles, à partida, qualquer entusiasmo. A obra de arte obriga-nos — por assim dizer – a vê-la da perspectiva correcta; mas na ausência da arte, o objecto é apenas um fragmento da natureza, como outro qualquer; podemos enaltecê-lo com o nosso entusiasmo, mas isso não dá a ninguém o direito de com ele nos confrontar. (Continue a pensar num desses insípidos instantâneos fotográficos de um fragmento de paisagem que tem interesse para quem os tirou porque estava lá e sentiu algo; mas qualquer pessoa olhará para eles com frieza de um modo inteiramente justificado, até ao ponto em que é justificável olhar friamente para uma coisa.)
Mas parece-me também que há outra maneira de apreender o mundo sub specie aeterni, para além do trabalho do artista. É o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo e o deixa tal como é — observando-o de cima, em voo.
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70.
Engelmann disse-me que em casa, ao remexer uma gaveta cheia de manuscritos seus, estes lhe parecem tão excelentes que pensa que valeria a pena dá-los a conhecer a outras pessoas. (Diz que o mesmo se passa ao ler cartas dos seus parentes já falecidos.) Mas quando pensa em publicar uma selecção desses manuscritos, as coisas perdem o seu encanto e valor, o projecto toma-se impossível. Eu disse que tal se assemelhava ao caso seguinte: nada há de mais extraordinário do que ver um homem, que pensa não estar a ser observado, a levar a cabo uma actividade vulgar e muito simples. Imaginemos um teatro; o pano sobe e vemos um homem sozinho num quarto, a andar para a frente e para trás a acender um cigarro, a sentar-se, etc., de modo que, subitamente, estamos a observar um ser humano do exterior, de um modo como, normalmente, nunca podemos observar-nos a nós mesmos; seria como observar com os nossos próprios olhos um capítulo de uma biografia — isto poderia, sem dúvida, ser ao mesmo tempo inquietante e maravilhoso. Estaríamos a observar algo mais admirável do que qualquer coisa que um dramaturgo pudesse arranjar para ser representado ou dito num palco: a própria vida. — Mas isso é o que vemos todos os dias, sem que tal nos provoque a mais ligeira impressão! Sim, mas não o vemos nessa perspectiva. — Bem, quando Engelmann olha para o que escreveu e o acha extraordinário (embora não se preocupe com a publicação de qualquer dos seus escritos), vê a sua vida como uma obra de arte feita por Deus e, como tal, merecendo decerto ser contemplada assim como qualquer vida e tudo o mais. Mas só o artista é capaz de apresentar assim uma coisa individual de modo que ela nos apareça como uma obra de arte; é verdade que esses manuscritos perderiam o seu valor se fossem examinados um a um e, especialmente, se fossem olhados desinteressadamente, isto é, por alguém que não sente por eles, à partida, qualquer entusiasmo. A obra de arte obriga-nos — por assim dizer – a vê-la da perspectiva correcta; mas na ausência da arte, o objecto é apenas um fragmento da natureza, como outro qualquer; podemos enaltecê-lo com o nosso entusiasmo, mas isso não dá a ninguém o direito de com ele nos confrontar. (Continue a pensar num desses insípidos instantâneos fotográficos de um fragmento de paisagem que tem interesse para quem os tirou porque estava lá e sentiu algo; mas qualquer pessoa olhará para eles com frieza de um modo inteiramente justificado, até ao ponto em que é justificável olhar friamente para uma coisa.)
Mas parece-me também que há outra maneira de apreender o mundo sub specie aeterni, para além do trabalho do artista. É o caminho do pensamento que, por assim dizer, voa sobre o mundo e o deixa tal como é — observando-o de cima, em voo.
Ludwig Wittgenstein, Cultura e Valor, tradução de Jorge Mendes, Edições 70.
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