Depois de um pequeno intervalo, retomei a leitura d’ O Idiota.
A quarta parte (última e conclusiva) começa com uns pressupostos teóricos do narrador, dá lugar a personagens menores para fazer tempo, e entretanto percebe-se que as coisas vão aquecer.
A partir do capítulo seis, a sequência de cenas é exímia no humor e no ritmo. O diálogo entre Aglaia e o príncipe, a sós e à parte, sobre o sarau de apresentação do presumível noivo à alta sociedade é tão divertido e rico em estratagemas, caretas e equívocos linguísticos que parece filmado por Lubitsch:
— Oiça, Aglaia — disse o príncipe — parece que está com muito medo de eu amanhã chumbar... nessa sociedade?
— Medo? Por si? — corou toda Aglaia. — Por que havia de ter medo por si, nem que... se cobrisse totalmente de vergonha? O que me importa isso? E que tipo de linguagem é essa? O que quer dizer “chumbar”? Acho de mau gosto, uma palavra ordinária.
— É uma palavra... estudantil.
— Pois, estudantil! Imprestável! Já vi que amanhã, pelos vistos, tenciona utilizar essa linguagem. Procure ainda mais no seu vocabulário, em casa, procure mais palavrinhas do mesmo género: vai fazer grande efeito! Que pena saber fazer uma entrada decente, ao que parece; onde aprendeu? Mas saberá ao menos pegar na chávena e tomar o chá com boas maneiras, estando todos expressamente a olhar para si?
— Acho que sei.
— É pena, porque iria rir-me imenso. Ao menos, parta o vaso chinês da sala de estar! Foi caro; por favor, parta-o! Foi um presente, a mãezinha ficará maluca e vai desatar a chorar na presença de todos, tal é o valor que ela dá ao vaso. Faça um gesto, daqueles que faz sempre, acerte no vaso e parta-o. Sente-se perto dele, de propósito.
— Pelo contrário, vou tentar sentar-me o mais longe possível do vaso, obrigado pelo aviso.
— Quer dizer que receia antecipadamente os seus gestos largos? Quase apostava que vai puxar a conversa para algum grande “tema”, para alguma conversa séria, culta e sublime. Oh, como vai ser... conveniente!
— Não, acho que seria estúpido... se não calhasse a propósito.
— Oiça, de uma vez por todas — não aguentou, por fim, Aglaia —, se começar a falar de alguma coisa do género pena de morte, ou do estado económico da Rússia, ou de que “a beleza salvará o mundo”, eu... é claro que vou ficar toda contente e me vou rir muito, só que... aviso: não apareça depois disso à minha frente! Está a ouvir? Falo a sério! Desta vez, estou a falar a sério!
Realmente, proferira a sua ameaça a sério, ressaltava mesmo das suas palavras e do seu olhar algo de estranhamente invulgar a que o príncipe nunca assistira antes e que nada se parecia com uma brincadeira.
— Pronto, agora fez com que eu vá falar inevitavelmente de coisas dessas e que até... talvez... parta o vaso. Antes não tinha medo nenhum, agora estou com medo de tudo. Vou chumbar, de certeza.
— Então, basta-lhe ficar calado. Senta-se e fica calado.
— Impossível, tenho a certeza de que vou falar e falar, só por causa do medo, e que também por medo vou escaqueirar o vaso. Se calhar, vou cair redondo no chão encerado, ou coisa do género, até porque isso já me aconteceu em tempos. Vou passar a noite a sonhar com isso. Não me devia ter falado dessa coisas!
Aglaia olhou sombriamente para ele.
— Sabe uma coisa? O melhor é eu não pôr lá os pés, amanhã! Declaro-me doente e pronto! — resolveu por fim o príncipe.
Aglaia bateu com o pé no chão, empalideceu de ira.
— Meu Deus! Alguma vez se viu uma coisa assim? Diz que não aparece, quando foi propositadamente para ele que... ooh, meu Deus! Que prazer infinito lidar com um... inepto como o senhor!
— Está bem, está bem, eu vou! — apressou-se a interrompê-la o príncipe. — E dou-lhe a minha palavra de honra que ficarei toda a noite caladinho, que não vou pronunciar uma única palavra. Vou fazer isso.
— E fará muito bem. Acabou de dizer: “declaro-me doente”; francamente, onde arranja o senhor essa expressões? Que mania é essa de falar comigo nessa linguagem? Está a gozar comigo ou quê?
— Desculpe, é também uma palavra escolar, não volto a repeti-la. (...)
Depois de uma noite mal dormida por causa das preocupações recém-instaladas, o príncipe tem de aturar mais uma conversa cheia de enganos e insinuações com o senhorio. Lébedev está bêbado e sente-se despeitado; as suas palavras são maliciosas e cómicas. Entre muitos disparates, este é o meu preferido (também me faz lembrar uma cena do cinema, mas é tão descabida a relação que fica fora de campo):
— E então?...
— E então, já se sabe, por pouco não me bateu, ou seja, por um pequeno triz, donde se pode depreender que não só por pouco não me bateu como quase me bateu. (...)
E eis que chega a noite do sarau. A nossa atenção vai toda para as palavras e gestos do príncipe.
Irá enfrentar os grandes temas? Será capaz de partir o vaso?
A quarta parte (última e conclusiva) começa com uns pressupostos teóricos do narrador, dá lugar a personagens menores para fazer tempo, e entretanto percebe-se que as coisas vão aquecer.
A partir do capítulo seis, a sequência de cenas é exímia no humor e no ritmo. O diálogo entre Aglaia e o príncipe, a sós e à parte, sobre o sarau de apresentação do presumível noivo à alta sociedade é tão divertido e rico em estratagemas, caretas e equívocos linguísticos que parece filmado por Lubitsch:
— Oiça, Aglaia — disse o príncipe — parece que está com muito medo de eu amanhã chumbar... nessa sociedade?
— Medo? Por si? — corou toda Aglaia. — Por que havia de ter medo por si, nem que... se cobrisse totalmente de vergonha? O que me importa isso? E que tipo de linguagem é essa? O que quer dizer “chumbar”? Acho de mau gosto, uma palavra ordinária.
— É uma palavra... estudantil.
— Pois, estudantil! Imprestável! Já vi que amanhã, pelos vistos, tenciona utilizar essa linguagem. Procure ainda mais no seu vocabulário, em casa, procure mais palavrinhas do mesmo género: vai fazer grande efeito! Que pena saber fazer uma entrada decente, ao que parece; onde aprendeu? Mas saberá ao menos pegar na chávena e tomar o chá com boas maneiras, estando todos expressamente a olhar para si?
— Acho que sei.
— É pena, porque iria rir-me imenso. Ao menos, parta o vaso chinês da sala de estar! Foi caro; por favor, parta-o! Foi um presente, a mãezinha ficará maluca e vai desatar a chorar na presença de todos, tal é o valor que ela dá ao vaso. Faça um gesto, daqueles que faz sempre, acerte no vaso e parta-o. Sente-se perto dele, de propósito.
— Pelo contrário, vou tentar sentar-me o mais longe possível do vaso, obrigado pelo aviso.
— Quer dizer que receia antecipadamente os seus gestos largos? Quase apostava que vai puxar a conversa para algum grande “tema”, para alguma conversa séria, culta e sublime. Oh, como vai ser... conveniente!
— Não, acho que seria estúpido... se não calhasse a propósito.
— Oiça, de uma vez por todas — não aguentou, por fim, Aglaia —, se começar a falar de alguma coisa do género pena de morte, ou do estado económico da Rússia, ou de que “a beleza salvará o mundo”, eu... é claro que vou ficar toda contente e me vou rir muito, só que... aviso: não apareça depois disso à minha frente! Está a ouvir? Falo a sério! Desta vez, estou a falar a sério!
Realmente, proferira a sua ameaça a sério, ressaltava mesmo das suas palavras e do seu olhar algo de estranhamente invulgar a que o príncipe nunca assistira antes e que nada se parecia com uma brincadeira.
— Pronto, agora fez com que eu vá falar inevitavelmente de coisas dessas e que até... talvez... parta o vaso. Antes não tinha medo nenhum, agora estou com medo de tudo. Vou chumbar, de certeza.
— Então, basta-lhe ficar calado. Senta-se e fica calado.
— Impossível, tenho a certeza de que vou falar e falar, só por causa do medo, e que também por medo vou escaqueirar o vaso. Se calhar, vou cair redondo no chão encerado, ou coisa do género, até porque isso já me aconteceu em tempos. Vou passar a noite a sonhar com isso. Não me devia ter falado dessa coisas!
Aglaia olhou sombriamente para ele.
— Sabe uma coisa? O melhor é eu não pôr lá os pés, amanhã! Declaro-me doente e pronto! — resolveu por fim o príncipe.
Aglaia bateu com o pé no chão, empalideceu de ira.
— Meu Deus! Alguma vez se viu uma coisa assim? Diz que não aparece, quando foi propositadamente para ele que... ooh, meu Deus! Que prazer infinito lidar com um... inepto como o senhor!
— Está bem, está bem, eu vou! — apressou-se a interrompê-la o príncipe. — E dou-lhe a minha palavra de honra que ficarei toda a noite caladinho, que não vou pronunciar uma única palavra. Vou fazer isso.
— E fará muito bem. Acabou de dizer: “declaro-me doente”; francamente, onde arranja o senhor essa expressões? Que mania é essa de falar comigo nessa linguagem? Está a gozar comigo ou quê?
— Desculpe, é também uma palavra escolar, não volto a repeti-la. (...)
Depois de uma noite mal dormida por causa das preocupações recém-instaladas, o príncipe tem de aturar mais uma conversa cheia de enganos e insinuações com o senhorio. Lébedev está bêbado e sente-se despeitado; as suas palavras são maliciosas e cómicas. Entre muitos disparates, este é o meu preferido (também me faz lembrar uma cena do cinema, mas é tão descabida a relação que fica fora de campo):
— E então?...
— E então, já se sabe, por pouco não me bateu, ou seja, por um pequeno triz, donde se pode depreender que não só por pouco não me bateu como quase me bateu. (...)
E eis que chega a noite do sarau. A nossa atenção vai toda para as palavras e gestos do príncipe.
Irá enfrentar os grandes temas? Será capaz de partir o vaso?
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