Avançar para o conteúdo principal

Insultos

[Cioran tem jeito para escrever insultos. Não recorre nunca a lugares comuns nem a palavras gastas. Pelo contrário, preocupa-se em encontrar os adjectivos mais intensos e adequados à ofensa. Trata-se de um trabalho moroso e frágil — lamentavelmente nem sempre apreciado. Nos seus exercícios insolentes (são tantos, muitos deles contra si próprio), o filósofo eleva o francês ao nível de uma língua profunda e musical: os insultos quase parecem elogios. Talvez isso aconteça, também, porque estas palavras de afronta são arrancadas das entranhas — Cioran é um tipo antiquado que ainda escreve com os órgãos. Em termos literários, são mais poesia do que certos poemas coxos que por aí andam. Merecem ser lidos em voz alta, num palco? — sim, onde podem revelar todo o seu dramatismo. E até algumas lágrimas.]


Encontrei X por acaso — sempre essa mistura desconcertante de crápula e louco, mas no fundo inapreensível: um homem que nem sequer tem a noção de “veracidade”, fisiologicamente “inexacto” e amoral. A sua grande desculpa é o desprezo universal que conseguiu suscitar em torno de si. Há serpente dentro dele. Sempre experimentei a seu respeito uma sensação de repugnância — e de curiosidade. Também terror frente a um rastejante, inquietação diante da sua aparência; olhos frios e brilhantes; há metal no seu olhar. No seu sangue misturam-se de certeza o grego e o eslavo, dois elementos irreconciliáveis que só podiam dar origem a um monstro. Subterrâneo e arrogante. Impressão de vertigem. A sua obsequiosidade monumental. Tudo isso comporta, em contrapartida, dons. Quando o conheci pela primeira vez, e sem ter lido nada dele, disse a M.: “De certeza que tem talento. É demasiado horrível. “Horrível” na moral e no físico. 
Escrever sobre ele um dia: “Retrato de uma Serpente”. 
P.S. Estas notas são tão desprovidas de misericórdia que me envergonho delas. A piedade, em mim, sucede à repugnância: ah! como os seres me fazem mal. 


Ainda sobre X — o que ele é, o fenómeno que encarna, só é concebível num país como o nosso, onde os contributos étnicos díspares não foram “soldados”, fundidos, misturados organicamente, onde o sangue está, por assim dizer, em pousio, porque a “cultura” não conseguiu executar a sua tarefa de individualizar ao mesmo tempo que a de nivelar. Ele é o monstro em estado natural, não corrigido; a sua astúcia, a sua falsidade, que são imensas, carecem totalmente de “verniz”, é hipocrisia... desvelada, é o impostor às claras, é o infame em plena luz do dia, e isso justamente por causa das suas contínuas e evidentes dissimulações. Somos atingidos pela total insinceridade, perceptível em todos os seus gestos, em todas as suas palavras; mas o termo não é justo: pois ser insincero é esconder a verdade, ou algum cálculo, ou sabe lá Deus o quê; mas ele, que tudo esconde, não esconde nada; pois em si não há nenhuma verdade, nenhum critério segundo o qual possa agir ou julgar; não há nada em si a não ser uma enorme obstinação, uma voracidade imunda, uma sede de ganância e celebridade ao nível mais vulgar. É um esterco, um fanático sem crença, um demente interesseiro... 


Hoje, em casa de J. Supervielle, falavamos de J. C. Chamei-lhe imundo. Protestos. Dominique Aury e Paulhan argumentaram que não merecia o epíteto, que não chegava a esse ponto.
De acordo: digamos que é um fracassado da imundície. 
Um homem sem dimensões.


Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Comentários