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O saké tem um gosto amargo como um insecto

À primeira vista — quer dizer, enganadoramente — O Gosto do Saké (Sanma no Aji) é mais um filme japonês sobre o casamento, sobre as relações entre pais e filhos; pode-se até mesmo dizer que é uma espécie de compêndio (monogatari). Aceitemos a premissa. 


A personagem principal chama-se Hirayama Shihei: viúvo, cinquenta e tal anos. Sabe-se que entrou para a Academia Naval Imperial Japonesa depois do liceu e foi oficial naval de carreira até 1945. Quando a guerra acabou e o Japão ficou de rastos, um amigo (talvez Kawai) arranjou-lhe emprego e ele conseguiu aguentar-se e vingar. Durante a acção do filme é director numa fábrica (faz parte da pequena burguesia urbana que vive mais ou menos desafogada e que Ozu gosta de filmar). Tem três filhos: Koichi, o mais velho, casou há pouco tempo e vive com a mulher num pequeno apartamento; Michiko e Kazuo ainda vivem com o pai. Mantém relações com alguns colegas do tempo do liceu com quem costuma comer, beber e jogar. Dois deles, Kawai e Horie, são amigos do peito. 

[O senhor Hirayama é representado pelo magnífico Chishu Ryu, habitual nos filmes de Ozu e habitual também no papel de viúvo com uma filha núbil.] 

Tudo começa com uma conversa casual entre Hirayama Shihei e uma jovem secretária. Depois de alguns planos de chaminés e do corredor da fábrica onde trabalham, a rapariga entra na sala de Hirayama Shishei com uns papéis. Ele pergunta-lhe por uma colega. Parece que está para se casar. — E o seu marido? O que é que faz? Ela não é casada, ainda vive com o pai. 

[Esta sequência vai ser retomada mais ou menos a meio do filme com pequenas alterações. Passada mais de uma hora, em que Hirayama é confrontado com a obrigação moral de casar a sua própria filha, voltamos a ver a mesma janela, o mesmo corredor. Ele está sentado à secretária na mesma posição. A rapariga entra e anuncia o seu casamento e o abandono do emprego. Hirayama deseja-lhe felicidades. Nos filmes de Ozu há sempre qualquer coisa que vai e vem, e a cada vez muda um pouco, apenas um pouco. É uma cadência semelhante ao rebentar das ondas na praia.] 




O tema já está em marcha. Depois da conversa inicial, aparece Kawai que lhe fala da urgência de casar Michiko. Segue-se uma reunião nocturna entre amigos onde comentam o casamento recente de Horie com uma mulher bastante mais nova, bebem e dizem piadas. Há cenas da vida conjugal de Koichi (são, como diz António Rodrigues na Folha de Sala da Cinemateca, verdadeiros momentos de comédia que giram em torno de bens de consumo e da escassez dos meios financeiros para os adquirir). E, ponto catalisador do filme, é-nos contado o caso de Tomoko, filha do professor Sakura que, apesar de não lhe faltarem pretendentes quando era nova, não casou para ficar a cuidar do pai viúvo e transformou-se numa solteirona amargurada. 

Convém determo-nos um pouco no professor Sakura. Ao contrário de Hirayama e dos seus amigos mais ou menos prósperos, a vida dele deu para o torto: ficou viúvo cedo, impediu a filha de casar por egoísmo e agora vive com muitos remorsos e pouco dinheiro. As cenas dele a comer e a beber com os antigos alunos são uma delícia (o prazer que sente ao experimentar, pela primeira vez na vida, o sabor do congro, ou a alegria ébria ao beber um bom whisky) e as coisas que diz sobre a solidão ecoam pelo filme até ao fim (na verdade, até muito depois do último plano) e podem-se resumir na frase invencível de outro filme de Ozu: a vida é e não é decepcionante

Um bocado encurralado entre o amigo que o avisa e o exemplo doloroso e real de Tomoko, o senhor Hirayama decide, mesmo sem o desejar, mesmo temendo a solidão que se seguirá, casar a filha. 

Entretanto descobre-se (e estas descobertas são quase arrancadas porque os japoneses encobrem os sentimentos como ninguém) que Michiko sente inclinação por Miura. O colega do irmão também gosta dela mas, julgando-a indisponível para casar, já se tinha comprometido com outra rapariga.   

[Se calhar os planos — demasiado abertos — da estação onde esperam o comboio já tinham insinuado a impossibilidade da relação. Ozu é o mais subtil dos realizadores: cada enquadramento conta, assim como os cortes e as elipses. Nada a mais, nada em falta — basta abrir os olhos e o coração.] 

Michiko acede então, seguindo as convenções sociais japonesas, a casar com o tal rapaz arranjado pelo amigo do pai. Nós nunca o vemos, nem tão pouco vemos a cerimónia. 

Do casamento, Ozu mostra-nos apenas a preparação. 
Vemos o pai, Michiko, o irmão mais velho e a cunhada, em enquadramentos isolados e frontais; um plano de conjunto em que a noiva aparece de costas e a cunhada num pequeno reflexo do espelho. Saem todos, Koichi e a mulher levam as malas. Seguem-se quatro planos fixos da casa vazia. 














Depois uma outra sala, em casa de Kawai. Hirayama Shishei e os seus dois amigos bebem e descontraem-se a seguir à boda — ah, a força colossal das elipses! 
Comentam de novo as palavras do professor Sakura sobre a solidão que nos espera a todos. 
Hirayama ainda vai ao bar Torys, talvez porque a dona lhe faz lembrar a mulher ou porque precisa de continuar a beber para esquecer. Ela põe a Marcha Oficial da Marinha Japonesa a tocar para o animar, acha-o triste, pergunta-lhe se vem de um enterro. — De certa forma, diz ele. 

Por fim Hirayama chega a casa, muito bêbado e vacilante. O filho e a nora, que o aguardavam preocupados, vão embora; Kazuo repreende-o e vai para a cama. Hirayama fica sozinho na sala de comer, cantarola a marcha da Marinha, cai em si e nas palavras sombrias do professor Sakura, murmura “estou realmente sozinho”. Aproxima-se das escadas mas não as sobe, ele sabe que lá em cima o quarto de Michiko está vazio para sempre, afasta-se da câmara, encaminha-se para a cozinha, deita chá num copo, bebe, deixa-se cair num banco — é um corpo derrotado. 


É nessa altura que percebemos que  O Gosto do Saké é sobre a solidão e é amargo como um insecto



Duas observações geométricas 

1. Ozu trabalha meticulosamente as propriedades e aplicação dos pontos e linhas de fuga num jogo geométrico com fins não só geométricos. É um processo que vem de trás, mas neste filme atinge proporções avassaladoras. Os planos de interiores — em que a câmara baixa, com a habitual objectiva de 50 mm, está situada numa das pontas de um corredor e o enquadramento abrange as paredes laterais e o que está ao fundo — são uma espécie de matriz. O que Ozu faz de verdadeiramente espantoso é que aplica essa matriz não só de uma forma plástica na construção dos planos, mas também no interior da narrativa. Assim, e neste caso, o casamento de Michiko corresponde às linhas oblíquas (que são também o tempo que passa e não volta mais) e o ponto de fuga é a solidão, a extrema solidão de todos os homens. (A última coisa imediatamente antes do nada?) 

2. Há quem lhes chame “planos almofada”, há quem diga que são “planos vazios”, pode até haver outras denominações. O objectivo destes planos é fazer uma pausa, uma suspensão da história e das personagens, uma inflexão na respiração do filme — nisso todos concordam. Porém, se pensarmos bem, apercebemo-nos que a respiração não é um fim mas uma pista. Nesses planos, não há diferença entre uma chaleira vermelha e uma árvore, entre um anúncio de néon e o mar — faz tudo parte da mesma natureza, quer dizer, não há coisas inertes, tudo é provido de uma certa alma. Como se o Deus de Ozu fosse um Deus ainda mais imanente e mais geométrico do que o de Espinosa. 

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O Gosto do Saké, de Yasujiro Ozu, vai ser projectado no próximo domingo, dia 12, às 18h00, no Auditório da Confederação (Rua da Arménia, 18, em Miragaia). 
Agradecimentos ao António M. Costa, da Medeia, que nos facultou uma cópia do filme; à Confederação por nos acolher; e aos amáveis flops — por tudo. 
Se correr bem, também vamos conversar sobre os jacarandás do Porto (escassez e isolamento).

Nota: texto da folha de sala corrigido.

Comentários

Anónimo disse…
" Der Lindenbaum " 菩提樹https://youtu.be/8OtwOcBaMxk
Anónimo disse…
Possível gralha em "[O último plEno faz um raccord pungente..."
c disse…
Sim. Já corrigi, obrigada.