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Reacendimentos

É muito provável que aquilo que aterroriza uma geração não provoque mais do que um sorriso perplexo à geração seguinte. Lembro-me de como, em 1964, apenas vinte anos após a guerra, Harold Clurman, o encenador de Incident at Vichy, mostrou aos actores o filme de um discurso de Hitler, na esperança de lhes dar uma ideia do período nazi em que decorria a acção da minha peça. Os actores, vendo como Hitler, perante um imenso estádio repleto de adoradores, se punha em bicos de pés, em êxtase, com as mãos entrelaçadas debaixo do queixo e um esgar de sublime auto-satisfação, agitando afectadamente o corpo, riram dos exageros daquela actuação.
(Arthur Miller, Porque escrevi As Bruxas de Salém, incluído no Manual de Leitura de As Bruxas de Salém, com edição do TNSJ e tradução de Rui Pires Cabral.)

Miller escreve este texto em 1996. Vinte anos depois, com as fogueiras de novos fanatismos a irromperam por toda a parte como um vendaval, pergunto-me se os actores de agora, vendo Hitler, terão a mesma vontade de rir.

Comentários

Eh Lopes da Silva disse…
Diz o Cormac que o passado é uma faca com o fio da lâmina embotado e cheio de bocas. Acho que isso faz sentido, hoje, que a faca está romba. Imagino-me a empunhar uma dessas, ferruginosa, com 50 anos, pontilhada do verdete das desilusões, o cabo ainda vermelhusco. Acho que os porcos cheiram ao longe os matadores. Para eles tenho-a sempre pronta.