Avançar para o conteúdo principal

É uma pessoa perfeita

O Puto Talidomida mete no bolso qualquer personagem excêntrica de David Lynch. Na verdade ele nem é bem uma personagem, melhor seria chamar-lhe entidade, como Alicia diz já não sei em que página. Convém também não esquecer que se trata de uma criação da criação, quer dizer, Cormac McCarthy inventou Alice (Alice and Bob, isso) que saca este rapaz defeituoso das profundezas do seu inconsciente puramente biológico

O Puto domina em três campos: apresentação, discurso e artes cénicas. Num certo sentido podemos, talvez, considerá-lo um primo americano das personagens de Lewis Carroll — todas em simultâneo, encavalitadas e turbinadas.

1. Quanto à apresentação, basta citar algumas das descrições que a imagem cresce por si, bizarra e poderosa: 

«O nome completo é Puto Talidomida. Não tem mãos. Só um par de barbatanas.»
(...) 

«Podemos falar do Puto? 
Claro. Que se foda. 
Toquei num ponto sensível. 
Na verdade, não. Apeteceu-me ser ordinária, só isso. 
Qual é a aparência dele? 
Mede um metro de altura. Tem um rosto bizarro. Uma aparência bizarra, eis o que as pessoas diriam, talvez. Não se percebe que idade tem. Possui umas barbatanas. Está a ficar careca, se é que não o é já. Deve pesar uns vinte e tal quilos, talvez. Você está a sorrir. 
Estava a imaginá-lo a entrar na barca de Caronte
(...)

«E que mais? 
Não tem sobrancelhas. Parece coberto de cicatrizes. Talvez queimaduras. Tem cicatrizes no crânio. Como se tivesse sofrido um acidente, talvez. Ou tivesse nascido de um parto difícil. Seja lá o que for que isso queira dizer. Usa uma espécie de quimono. E anda constantemente para trás e para diante. Com as barbatanas atrás das costas. Como se patinasse no gelo, sei lá. Fala sem parar e usa frases feitas que eu tenho a certeza de que não compreende. Como se tivesse deparado com a linguagem algures e não soubesse ao certo o que fazer dela. Apesar disso — ou talvez por causa disso —, diz por vezes coisas que me impressionam muito. Mas não é, nem por sombras, uma figura saída de um sonho. É coerente em todos os seus pormenores. É perfeito. É uma pessoa perfeita

2. O seu discurso é prolixo em lugares comuns e trocadilhos (a maior parte das vezes truncados, diga-se), rimas maradas, piadas, insultos e palavrões. Imagino o gozo que deu a Cormac escrever estas falas desenfreadas e ao Paulo Faria traduzi-las (não sem algum sofrimento, é certo). 
 
«De que género de coisas é que ele falava?
Em grande parte, dizia disparates. Intercalados com comentários que eram bastante interessantes. Às vezes. Mas, na maioria do tempo, era uma conversa que podemos caracterizar como esquizoide. Cacofonias. Rimas. Nada daquilo fazia eco da minha vida interior. Antes que pergunte.»
(...)

«Ele falava sobre ciência, mas, de modo geral, enganava-se redondamente. Gostava de citar autores conhecidos, mas também aí se enganava. Às vezes, imitava sotaques, mas sem grande jeito. Ou então citava passagens de textos que eu tenho a certeza de que não existiam. Havia um livro sobre a sexualidade feminina chamado As Húmidas e as Furiosas, que ele citou várias vezes. Experimente procurar esse título.»

Bom, isto é o que Alicia conta ao seu psiquiatra, mas o melhor é passar às palavras do próprio:

«Não sabes do que estás a falar. É tudo palavreado.
Ah, sim? Bem, lembra-te só de quem tem a mão na porta NAND, Patolas. Porque não é o velho baboso nem é o maduro da túnica rúnica. Se é que me estás a topar. Alto. Uma chamada. Remexeu nos bolsos e tirou de lá um enorme telefone e encostou-o à orelha diminuta e nodosa. Desembucha, Bucha. Estamos em reunião. Pois. Uma semi-hostil. Certo. Base Dois. Um gajo respira por botijas de oxigénio cá no alto, foda-se. Não. Não. Azarilho. Dois arados não fazem um certo. Esses tipos são um bando de palermas com covinhas nas bochechas do cu, e podes dizer-lhes que fui eu que disse.»

3. Por fim, o Puto Talidomida também domina nas artes cénicas. Digamos que a sua função é coordenar um bando de maltrapilhos («a velha com a estola que parecia um animal atropelado numa estrada e o Grogan Porcalhão e os anões e o Espetáculo de Menestréis. Todos reunidos aos pés da cama dela») que fazem, ou melhor, tentam fazer estranhíssimos números de vaudeville. É ele que põe e dispõe essas criaturas, atribui acções, texto, ritmo — enfim, é o encenador de serviço do inconsciente de Alice.

«Que género de números?
Coisas que ele montava. Números de vaudeville. De pregadores itinerantes. Que depois nunca chegaram a acontecer, é claro. Coisas como A Cigana de Poughkeepsie. Ou As Malucas do Galinheiro, tendo como convidado especial o Galaroz de Worcester. Atrações futuras que nunca tiveram lugar.»

Comentários