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Advertência

Podendo, de bom grado se teria passado sem tanta mitologia. Mas estamos convencidos de que o mito é uma linguagem, um meio de expressão — quero dizer, não uma coisa arbitrária mas antes um viveiro de símbolos a que pertence, tal como a todas as linguagens, uma particular substância de significado que mais nada poderia dar. Quando repetimos um nome próprio, um gesto, um prodígio mítico, exprimimos em meia linha, em poucas sílabas, um facto sintético e compreensivo, um miolo de realidade que vivifica e alimenta todo um organismo de paixão, de estado humano, todo um conjunto conceptual. Se depois este nome, este gesto nos for familiar desde a infância, desde a escola — tanto melhor. A inquietude é mais verdadeira e cortante quando agita uma matéria costumeira. Aqui contentámo-nos em servir-nos de mitos helénicos dada a perdoável voga popular destes mitos, dada a sua imediata e tradicional aceitabilidade. Temos horror de tudo o que é incompleto, heteróclito, acidental, e tentamos — até materialmente — delimitar-nos, impor-nos a nós próprios uma moldura, insistir numa concluída presença. Estamos convencidos de que uma grande revelação só poderá sair da teimosa insistência numa mesma dificuldade. Não temos nada em comum com os viajantes, com os experimentadores nem com os aventureiros. Sabemos que o modo mais seguro — e mais rápido — de nos espantarmos é fixarmos impávidos sempre o mesmo objecto. Num belo momento, este objecto parecer-nos-á — miraculoso — que nunca o tínhamos visto.


Cesare Pavese, Diálogos com Leucó. Tradução de José Colaço Barreiros. Assírio & Alvim. Abril de 2007.

Comentários

Linda, a citação, em jeito de reduto essencial ou arte poética desta obra. Por outro lado, aproveitando as tuas palavras de há pouco e descobrindo isto (com alguma perplexidade), creio que podiam colocar o Tiago Guedes, em jeito de Íxion, antagonista impertinente, a desafiar (pelo menos) todos os convidados no final das sessões (diálogos depois do fim, pois). https://leffest.com/filmes/dialogos-depois-do-fim-filme-e-serie
Não resisto, não sabendo se serei muito vero(s)símil (ou eloquentemente sentencioso e frágil?), mas… (citando Ozu) se isto é a fase de pós-produção (com direito a esta súmula) nem quero (lá está, frágil e sentencioso que sou) saber ou perguntar por onde começou (embora apostando, bruxo, que terá que ver com a Tirésias):

“Em pós-produção
Diálogos escritos por Pavese, eloquentes e ao mesmo tempo sentenciosos e frágeis, mas inverossímeis, entre deuses humanizados, semi-deuses, heróis e outras figuras pagãs da mitologia grega, que questionam, através do imaginário dos mitos gregos, a sociedade do homem contemporâneo. Fora de um dado tempo e espaço, e portanto, como os mitos, sempre actuais.”
c disse…
Oh, não! estamos tramados.


Esta advertência foi escrita por Pavese no seu diário como prefácio aos Diálogos e depois incorporada nos próprios Diálogos. É curta, mas muito importante.
c disse…
Mal tenha tempo, publico-a na íntegra.