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Benjamin Fondane



6, rue Rollin

O rosto mais sulcado, mais escavado que se possa imaginar, um rosto com rugas milenares, mas de modo algum petrificadas, pois eram animadas pelo tormento mais contagioso e mais explosivo. Não me cansava de as contemplar. Nunca antes tinha visto uma tal concordância entre parecer e dizer, entre fisionomia e palavra. É-me impossível pensar na mais pequena das afirmações de Fondane sem imediatamente me dar conta da presença imperiosa dos seus traços. 

Visitava-o muitas vezes (conheci-o durante a Ocupação), sempre com a ideia de não ficar mais de uma hora e acabava por passar a tarde inteira em sua casa, por minha culpa claro, mas também por culpa dele: ele adorava falar, e eu não tinha coragem e muito menos vontade de interromper um monólogo que me deixava exausto e arrebatado. No entanto, na primeira visita que lhe fiz com intenção de o interrogar sobre Chestov, eu é que fui descomedido. Pois, sem dúvida por necessidade de me exibir, não lhe fiz pergunta nenhuma, preferindo expor-lhe as razões do meu fraquinho pelo filósofo russo, de quem ele era não o discípulo mais fiel, mas o mais inspirado. Talvez não seja despropositado salientar que entre as duas guerras Chestov era muito conhecido na Roménia onde os seus livros eram lidos com mais fervor do que em qualquer outro lado. Fondane não teve nada a ver com isso e ficou muito surpreendido ao saber que, no país de onde ele próprio vinha, tínhamos seguido o mesmo caminho... Não havia aí algo de perturbador e muito mais do que uma coincidência? Mais do que um dos leitores do seu Baudelaire ficou impressionado com o capítulo sobre o tédio. Pela minha parte, sempre fiz uma ligação entre a sua predilecção por esse tema e as suas origens moldavas. Paraíso da neurastenia, a Moldávia é uma província de um encanto desolado verdadeiramente insuportável. Em Jassy, a capital, passei duas semanas em 1936 que, sem a ajuda do álcool, me teriam mergulhado na mais destruidora das tristezas. Fondane citava com prazer versos de Bacovia, o poeta do tédio moldavo, um tédio menos refinado, mas muito mais corrosivo do que o «spleen». Para mim é um enigma que tanta gente consiga não morrer disso. A experiência do «abismo» tem, vê-se bem, origens longínquas. 

Assim como Chestov, ele gostava de partir de uma citação, um simples pretexto ao qual não parava de se referir e de onde tirava conclusões inesperadas. Nos seus desenvolvimentos havia sempre, apesar da subtileza, um não sei quê de comovente; ele era subtil, até abusava da subtileza, o seu vício patente. Em geral, não sabia parar — tinha o talento da variação — e dir-se-ia, ao ouvi-lo, que odiava o ponto. Isso era evidente nos seus improvisos, era evidente nos seus livros, sobretudo no seu Baudelaire. Em diversas ocasiões, disse-me que devia suprimir um bom número de páginas, e é incompreensível que não o tenha feito quando sabemos que vivia com a quase certeza de um infortúnio iminente. Considerava-se ameaçado, e estava-o na verdade, mas podemos supor que interiormente se resignava à condição de vítima, pois sem esta misteriosa cumplicidade com o inelutável, e sem um certo fascínio pela tragédia, não é possível explicar a sua recusa de qualquer precaução, sendo a mais elementar a mudança de domicílio. (Terá sido denunciado pela porteira!) Estranho «descuido» da parte de alguém que era tudo menos ingénuo e cujos julgamentos de ordem psicológica ou política demonstravam uma clarividência excepcional. Guardo uma recordação muito precisa de uma das minhas primeiras visitas durante a qual, depois de ter enumerado as vertiginosas taras de Hitler, ele descreveu-me, como um visionário, o colapso da Alemanha, e com tais detalhes que na altura parecia que estava a assistir a um delírio. Não era senão uma constatação antecipada. 

Em matéria literária, nem sempre partilhei dos seus gostos. Ele recomendou-me com insistência o Shakespeare de Victor Hugo, um livro quase ilegível, e que me faz pensar nas palavras que um crítico americano usou recentemente para qualificar o estilo de Tristes Trópicos: a aristocracia do bombástico — a aristocracia do empolado. A expressão é impressionante, embora injusta no caso referido.

Compreendi melhor a sua parcialidade para com Nietzsche cujos fragmentos, incomparavelmente mais densos do que os de Novalis, a quem punha restrições, ele tanto apreciava. Na verdade, não se interessava lá muito pelo que um autor diz, mas pelo que podia ter dito, pelo que esconde, adoptando assim o método de Chestov, a saber a peregrinação através das almas, muito mais do que através das doutrinas. Sensível como nenhum outro aos casos extremos, às sinuosidades cativantes de certas sensibilidades, uma vez falou-me de um Russo Branco que durante dezoito anos sofreu em silêncio porque achava que a mulher o traía. Um dia, depois de tantos anos de suplício mudo e não aguentando mais, pediu-lhe explicações. Tendo então percebido com toda a certeza que as suas suspeitas eram infundadas e incapaz de suportar a ideia de se ter atormentado em vão durante tanto tempo, saiu disparado para o quarto ao lado e rebentou os miolos. 

Noutra ocasião, ao recordar os seus anos em Bucareste, deu-me a ler um artigo abjecto escrito contra ele por Tudor Arghezi, grande poeta, mas panfletário ainda maior, que se encontrava então preso por razões políticas (foi no rescaldo da guerra de 14). Fondane, muito jovem, foi lá procurá-lo para uma entrevista. Como recompensa, o homem tomou a liberdade de lhe fazer um retrato caricatural, e de um nível tão infame, que nunca consegui compreender como Fondane mo pôde mostrar. Ele tinha esses distanciamentos... 

Em geral indulgente, deixou de o ser com aqueles que pensavam ter encontrado, enfim, com aqueles que se converteram a qualquer coisa. Ele estimava muito Boris de Schloezer e foi uma grande decepção saber que o magistral tradutor de Chestov se tinha passado para o catolicismo. Não conseguia acreditar, equiparou o acontecimento a uma traição. Procurar era para ele mais do que uma necessidade ou uma obsessão, procurar sem parar era uma fatalidade, a sua fatalidade, perceptível até na forma de falar, principalmente quando se deixava levar ou quando oscilava sem trégua entre a ironia e a respiração ofegante. Censurar-me-ei sempre por não ter anotado as suas palavras, as suas fórmulas, os saltos de um pensamento virado em todas as direcções, lutando sem cessar contra a tirania e a nulidade das evidências, ávido das suas contradições e como que assustado de chegar lá. 

 Ainda o vejo a enrolar cigarro atrás de cigarro. Nada se comparava, repetia ele, ao prazer de acender um cigarro em jejum. Não se privou disso, apesar de uma úlcera de estômago que pretendia tratar mais tarde, num futuro sobre o qual não tinha nenhuma ilusão... A mulher do seu amigo mais antigo disse-me na altura que não conseguia gostar dele por causa do que ela chamava «o seu ar tão enfermiço». É verdade que ele não trazia no rosto as marcas da prosperidade; só que nele tudo estava para além da saúde e da doença, como se uma e outra não fossem senão etapas já ultrapassadas. Nisso assemelhava-se a um asceta, um asceta de uma vivacidade prodigiosa e de uma verve que fazia esquecer — enquanto falava — a sua fragilidade e a sua vulnerabilidade. Mas quando se calava, ele que, apesar de tudo, negligenciava o seu destino, dava a impressão de arrastar consigo qualquer coisa de lamentável e, em certos momentos, de perdido. O poeta inglês David Gascoyne (que também teve, noutras circunstâncias, um destino trágico) contou-me que foi perseguido durante meses pela imagem de Fondane encontrado por acaso no Boulevard Saint-Michel no dia da morte de Chestov. Compreende-se facilmente porque é que, passados trinta e três anos, um ser tão cativante está singularmente presente no meu espírito e também porque nunca passo diante do número 6 da rue Rollin sem sentir um aperto no coração.

Exercícios de Admiração – Ensaios e Retratos, de Emil Cioran, Gallimard, 1986.

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