Imaginei tantas vezes a estreia de No Home Movie. Mas nunca assim...
Quero falar-vos de Chantal. Falar-vos de tudo o que me deu, tudo o que me ensinou, tudo o que partilhamos. Contar-vos como era radiante, inteligente, surpreendente e também divertida... Diz-se muitas vezes de Chantal que tinha princípios estéticos. Bom, eu acho que os princípios nos protegem, e Chantal não se protegia. Confiava no que estava para vir, sabia acolher o acaso.
Lembro-me de uma história que lança alguma luz sobre a sua forma de trabalhar. Durante a preparação de La Folie Almayer, ela precisava de um porto. A assistente perguntou-lhe se queria um porto grande ou um porto pequeno. Ela respondeu «um porto grande». Mais tarde, perguntamos-lhe se tinha a certeza que era isso que queria, porque talvez um porto pequeno fosse mais acolhedor. Recordo-me que íamos pela rua e Chantal estava ao telefone. Parou, bateu com o pé e disse «quero um porto grande, foi o que disse, não me peçam para explicar porquê». Não queria justificar o gesto, mas sim acolhê-lo, transformá-lo e talvez depois compreendê-lo.
Chantal era muito livre e intuitiva. E às vezes provocadora. Não conhecia interdições. Não dizia temos de filmar assim, temos de enquadrar assado, não se faz isto, não se faz aquilo. As suas escolhas vinham de dentro. O que a guiava era o que sentia. Ela tinha uma relação mais física do que cerebral com a imagem, com as cores, com os sons, com o ritmo. Na montagem nunca a ouvi dizer «tenho uma ideia». Dizia era «ouvi isto, ou pensei nisto, ou tenho vontade disto, ou estou obcecada por isto», mas nunca era «tenho uma ideia».
Quando ia filmar um documentário, não queria explicar o que ia fazer. Se explicasse, perdia o desejo. Queria ir ao terreno e ser uma placa sensível, uma esponja. Não queria prender o filme a um projecto, mas deixá-lo vir a ela, deixar-se invadir pela matéria. Se as imagens de Chantal são tão profundas e fortes, se ultrapassam o que mostram, é porque não estão presas às intenções, mas estão carregadas de todas as interrogações, de todas as obsessões que a habitavam.
Esta forma de trabalhar, de descobrir ao fazer, era ainda mais forte quando preparávamos instalações. A propósito de um projecto de instalação, Chantal escreveu: «Disse muitas coisas sobre a instalação que se seguiu a D’Est antes de a realizar e compreendi que, mais ainda que um filme, uma instalação não se descreve antecipadamente, nasce pouco a pouco através do próprio trabalho. Também aqui, não falarei de nada, excepto da necessidade de fragmentação porque isso demonstra que não se pode mostrar tudo de um mundo.
Durante a montagem de D'Est, sentíamos que os longos travellings sobre os rostos de pessoas que esperam, as imagens de pessoas que caminham, remetiam para outras pessoas que esperam ou caminham, para outras filas, para outras histórias da história, mas não falávamos disso. Foi apenas um ano depois, quando estávamos a montar a instalação D’Est, au bord de la fiction, que Chantal colocou palavras sobre as repercussões dessas imagens em si mesma. Essas palavras são o texto do 25º écran cujo último parágrafo vou ler:
«Ontem, hoje e amanhã, houve, haverá, há neste mesmo momento pessoas que a história que já nem sequer H tem, que a história vem atacar, e que estão ali à espera, amontoadas, para serem mortas, espancadas ou deixadas à fome, ou que caminham sem saber para onde vão, em grupo ou isolados. Não há nada a fazer, é obsessivo e estou obcecada por isto. Apesar do violoncelo, apesar do cinema. Quando o filme terminou, disse para mim mesma, então era isto, era outra vez isto.»
Chantal gostava de planos frontais. Não foi uma decisão formal, mas um gosto, quase uma necessidade. O eixo frontal não descreve, não designa, mas cria um espaço de percepção e reflexão. Também trabalhámos esse espaço durante a montagem. É um espaço deixado ao espectador para que ele possa experimentar, sentir, procurar. Era muito importante para Chantal que o espectador fizesse o seu próprio trabalho. Ela dizia que queria que sentíssemos o tempo a passar nos seus filmes. Quando alguém dizia «ah, vi um filme formidável, nem dei pelo tempo a passar», ela não considerava que isso fosse um elogio. Sentia como se estivessem a roubar o seu tempo. Na montagem, nunca dizíamos: «Olha, aqui é preciso um plano longo». Escolhíamos as durações de forma intuitiva e mais tarde compreendíamos porquê. É como se os próprios planos impusessem as suas durações. Chantal gostava de contar que às vezes acontecia batermos na mesa exactamente ao mesmo tempo para dizer que tínhamos de cortar um plano. Víamos as mesmas coisas. Lembro-me que uma vez, depois de uma projecção de trabalho, uma de nós disse que um determinado travelling era demasiado longo e a outra disse que era demasiado curto. Chantal concluiu: «estamos de acordo, quer dizer que há um problema!»
A partir do momento em que o filme começava a existir, ele rejeitava certas cenas, por isso não hesitámos em retirá-las ou reduzi-las. Se o filme recusasse um plano, mesmo que fosse um belo plano, não insistíamos. Muitas vezes, isso dava força ao que vinha depois, então o filme ganhava. Dizíamos que na montagem joga-se a quem perde ganha.
Cada filme, cada instalação era como se fosse uma primeira vez. Não tínhamos regras, nem medos, nem barreiras. Entrávamos sempre numa nova aventura, sensorial e intelectual. As nossas conversas eram muito simples. Dizíamos poucas palavras, como se com palavras a mais corrêssemos o risco de estragar alguma coisa. Muitas vezes dizíamos «é belo» ou «é forte». Havia palavras de que gostamos muito, ela dizia que tínhamos de ser drásticas, sem concessões. Também dizíamos que íamos cortar a eito. Às vezes eu dizia «é preciso complexar». Ela gostava muito dessa palavra. Dizia: «Sim, é isso, complexa um pouco». Era quando sentíamos que havia alguma coisa demasiado dita, demasiado linear. Mas quando a montagem chegava ao fim, havia uma grande simplicidade na construção do filme. Complexar não era complicar, era acrescentar pesos e contrapesos, trabalhar a tensão.
Chantal não procurava nem verossimilhança nem realismo. Não tinha medo de anacronismos. Detestava o naturalismo. Nunca tentava copiar a realidade, nem representá-la, transformava-a. Nos seus filmes, nas suas instalações, o presente, o visível, refletem-se no invisível, no subterrâneo. Ela gostava da frase de Jabès: «Todas as interrogações estão ligadas ao olhar». Não sabia se era verdade, mas isso dizia-lhe alguma coisa.
Chantal era alérgica à psicologia. O psicologismo é a explicação psicológica de actos e sentimentos. O cinema de Chantal nunca explica, questiona-nos e põe-nos frente a frente connosco próprios. É isso que o torna tão forte e vivo.
Para Chantal tudo era possível. Ela não queria limitar-se a um género específico. Ela nunca quis fazer um cinema elitista e para poucos. Quando realizou Um Divã em Nova York, pretendia fazer um filme comercial e que todos o vissem. Aliás, ela sempre quis que toda gente fosse ver os seus filmes. Quando comecei a montar o Divã, Chantal ainda estava em filmagens. Fiquei admirada ao ver que havia tantas tomadas por plano. Não estava habituada a isso com a Chantal, em geral quando achava que a tomada estava boa passava para outra cena. Quando regressou, explicou-me. Disse-me que havia tantas implicações financeiras sobre o filme que lhe pediram para fazer muitas tomadas «para se cobrir». Mas ela disse-me: «Já não é uma cobertura, é uma pilha de edredãos!» E estou a sufocar sob esses edredãos!»
Sim, Chantal era engraçada. Às vezes esquecemo-nos disso. Engraçada e livre. Fora das normas. Quando estávamos a montar Sud, montávamos à tarde e de manhã cada uma tratava das suas coisas. Um dia quando cheguei ela perguntou-me «que é que fizeste esta manhã?» Fazia muito este tipo de perguntas banais: que é que fizeste? que é que comeste… Disse-lhe «estive a fazer cortinas». Respondeu-me: «Fizeste cortinas sozinha? Olha, isso impressiona-me mais do que se tivesses ganho o Óscar de Melhor Montagem!» Para vos falar de No Home Movie, acho que as palavras mais justas são aquelas que a própria Chantal escreveu, alguns meses depois do fim da montagem. Foi no outono de 2014.
«Há anos que comecei a filmar um pouco por todo o lado, assim que sentia que havia um plano. Na verdade sem um objectivo, mas com a sensação de que um dia essas imagens haviam de dar um filme, ou uma instalação. Deixava-me ir, por desejo e instinto. Sem argumento, sem projecto consciente. Destas imagens nasceram três instalações que foram mostradas um pouco por todo o lado. Esta primavera, com Claire Atherton e Clémence Carré, recolhi cerca de vinte horas de imagens e sons sem saber ainda para onde ia. E começamos a esculpir na matéria. Essas vinte horas converteram-se em oito, depois seis e, passado algum tempo, duas. E aí, vimos, vimos um filme e compreendi: claro, sem o admitir, era este o filme que queria fazer E, como se costuma dizer, o fio condutor deste filme é uma personagem, uma mulher nascida na Polónia, que veio para a Bélgica em 1938 para fugir aos pogroms e às atrocidades. Esta mulher é a minha mãe. No seu apartamento em Bruxelas.»
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