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Um passeio na floresta


[Uma das razões para gostar tanto de Eu sou uma rapariga sem história, é o seu carácter multidirecional, quer dizer, é um livro inteligente mas também interventivo (muito) e brincalhão (muitíssimo) que não se deixa agarrar facilmente. Por exemplo, queremos guardá-lo na secção de ensaios de teoria literária onde, tirando a aranha que faz a sua teia, não se passa quase nada, mas volvidas umas páginas, já ele se pirou e temos de correr para o agarrar e já estão —  Alice Zeniter e as numerosas personagens que a acompanham nesta excursão — no palco ou na floresta. Et la voilà, la forêt:]

Quando avanço entre os arbustos carregados de bagas, os troncos brilhantes de chuva, volto a pensar nas narrativas de colheita e na ficção-cesta de que Ursula Le Guin falava. Quase tenho a sensação de poder escutar os seus passos atrás dos meus nas pequenas veredas que descem em direcção ao mar. Faz-me bem que ela ali esteja. Porque já não posso com narrativas de caçadores, narrativas de homens notáveis que fazem cenas, narrativas repetidas em pescadinha de rabo na boca dos dominantes, narrativas triangulares, narrativas que invisibilizam mas não sei bem o que é que ainda falta escrever. Enquanto avançamos sob os castanheiros, Ursula Le Guin diz-me que a ficção-cesta tal como ela a imagina, é uma ficção que saberia «manter o Homem no espaço ao qual pertence»: ­
— No seio do seu grupo, evidentemente, mas também na natureza. Seria uma ficção que se desembaraçaria da singularidade sublime do herói e que não utilizaria a fauna nem a flora unicamente como cenário. 
Eu aceno com a cabeça, voltando a pensar nas imagens do escritório onde ela escrevia que vi na Internet. Uma sala minúscula, toda em madeira, cujas janelas imensas davam para as copas. Ursula Le Guin não precisava de fazer passeios na floresta, trabalhava perdida nas árvores. 
— Por junto, diz ela no momento em que a vereda mergulha a pique em direcção a um regato, voltaríamos as costas ao pensamento cartesiano segundo o qual o homem seria mestre e possuidor da natureza. 
— Ah, esta parvoíce da Grande Partilha! 
Esta voz é o pensamento de Baptiste Morizot, um filósofo que leio regularmente de há um tempo para cá. E ele junta-se inevitavelmente a nós nos passeios através das árvores arrancadas pela última tempestade. Não sei porquê, na minha imaginação, ele utiliza termos como «parvoíce» quando sempre que o ouvi em entrevistas era pelo contrário muito gentil, muito conciso. Suponho que o contagio um bocadinho sempre que o convoco na floresta. A verdade é que se põe a caminhar connosco e conta que já não pode mais com a velha narrativa que assenta numa separação absoluta entre o ser humano e a natureza. Pergunta-nos se acreditamos verdadeiramente que o homem pode mudar a história da Terra sem que esta castigue as sociedades em compensação. 
— Não, diz Ursula. 
— Claro que não, acrescento eu. 
E Baptiste Morizot replica: 
— Estamos, efectivamente, presos nos constrangimentos de mil retroacções com a natureza. Como vêem… 
E nós, respondemos que sim, claro que sim. Concluímos, os três, que a velha narrativa não pode funcionar. É preciso interrompê-la. É preciso calá-la. É preciso instaurar o silêncio. 
— Essentially, I think it’s time for men to shut up! 
Isto é a autora americana Lucy Ellmann, subitamente aparecida atrás dos álamos.
(...)

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