A fisiologia não é um instrumento de análise do pensamento. Às vezes sabemos algum pormenor das funções orgânicas de um ou outro filósofo, uma disfunção, uma doença mais grave, mas esses factos são resguardados e não afectam o trabalho de escrutínio dos seus raciocínios — simplesmente, não é assim que as convenções académicas funcionam.
Porém, quando um pensador faz gala de se afastar das práticas admitidas, tudo é possível. É o que acontece com Emil Cioran: para compreendermos os seus pensamentos devemos, antes de mais, esquecer o jargão da hermenêutica e considerar a fisiologia e as suas palavras clínicas.
Essa é uma das ideias que se apreende logo nas primeiras páginas dos seus Cadernos. Quando começou a escrever estas notas diárias, Cioran tinha 46 anos o que, na altura, correspondia a uma idade já um bocado avançada (em 1957, a esperança de vida em França para os homens era de 65,5 anos). Mas o problema é mais estrutural. Para além dos males do espírito de que sofre desde sempre — tédio, arrependimento, ansiedade, angústia, e uma tristeza sem fim —, também não era muito robusto fisicamente. Todo o seu corpo balançava entre moideiras e dores agudas; os órgãos ressentiam-se de qualquer coisa sinistra que o assombrava e enfraquecia.
Como Cioran era, acima de tudo, um homem obcecado e dado ao canto lamurioso (e quem bem ele canta!), foi cego de entendimento que construiu o seu pensamento filosófico sobre as doenças ou, para usar o seu vocabulário, sobre a podridão da matéria.
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