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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2025

«As nossas mulheres»

Na apresentação da candidatura à Câmara do Porto, o concorrente da «direita democrática» disse: «Nesta terra não se ameaça, não se intimida impunemente as nossas mulheres, as nossas crianças, ou qualquer cidadão, seja nas ruas, nos jardins, ou nas estações de metro. Quem não sabe comportar-se dessa forma, não é bem-vindo!» Ia escrever que é uma declaração repugnante e irresponsável. Mas desisti. Certas palavras já não significam nada.

Livros fortificantes

O que não devo aos livros destrutivos, do contra, «ácidos»? Sem eles, já não estaria vivo. É por reacção ao seu veneno, por resistência à sua força nociva, que me fortaleci e me apeguei ao ser. Livros fortificantes , pois despertaram em mim tudo o que os devia negar. Li quase tudo o que é preciso para soçobrar, mas foi precisamente por isso que consegui evitar o naufrágio. Quanto mais «tóxico» é um livro, mais age em mim como um tónico. Só me afirmo pelo que me exclui. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Dos jornais XXVII

Tudo impressiona nas notícias sobre o MAL, mas o que vai ficar na minha memória é a fotografia da faca pousada sobre um naperon bordado .

Novo mundo

Estão 33 ou 34 graus. Turistas japoneses passeiam pela Cordoaria de guarda-chuva aberto, tentando proteger-se do sol. Dezenas de guarda-chuvas, avançando em todas as direcções, como num dia de tempestade. Pousadas nos semáforos, as gaivotas observam este novo mundo, confusas.

Explicações

Numa conversa com um amigo, que tenta explicar, pela milionésima vez, a ascensão da extrema-direita com mapas, números e deduções «lógicas», irrito-me. Identificar o monstro, sentá-lo no laboratório da politologia e observar-lhe o ranho ao microscópio, não me dá alívio nem esperança. Pelo contrário. Desculpa, amigo. Não há ninguém neste mundo que não conheça bem o monstro. Basta olharmo-nos ao espelho.

Dos jornais XXVI

Do cinema

 
O nacionalismo é um pecado do espírito. Pertencer a um povo não tem um significado profundo (excepto, talvez, para os Judeus). A única comunidade verdadeira é aquela que se funda na «família espiritual», nem nacional nem ideológica. Só me sinto solidário com quem me compreende e que eu compreendo, com quem acredita em certos valores inacessíveis às multidões. Tudo o resto é mentira. Um povo é uma realidade, sem dúvida; uma realidade histórica e não essencial. Quando penso na efervescência da minha juventude por causa da minha tribo! Que loucura, meu Deus! Temos de nos libertar das nossas origens, ou pelo menos esquecê-las. Tenho tendência a voltar a elas, sem dúvida por masoquismo, por gosto da servidão, das «grilhetas», da humilhação. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Próximas gerações

Perante o risco de desaparecer, em resultado do aumento do nível do mar, Tuvalu, o pequeno país da Ocêania, decidiu tornar-se «a primeira nação digital do mundo». Para isso, tem em curso um «projecto de digitalização total do país e de preservação de uma réplica no metaverso». «No pior dos cenários», diz o ministro das Alterações Climáticas, «pelo menos digitalizamos os nossos valores, que queremos passar às próximas gerações». Costuma dizer-se que a realidade ultrapassa a ficção. Mas a ficção acabou. Tudo é real: o imaginável e o inimaginável, o pensável e o impensável. A realidade só ultrapassa a realidade.

China my China

21 de Junho  Ontem disse à Doreen que o governo devia pôr à disposição da população uma sala ou um edifício onde as pessoas se pudessem encontrar, conversar, fazer discursos, desabafar. Ela respondeu-me que as mulheres na China antiga, quando estavam com raiva ou tinham alguma aflição, subiam a pequenos estrados, montados especialmente para elas na rua, e ali davam rédea solta à sua fúria ou à sua tristeza. Essa «prática» parece-me muito mais eficaz do que o método psicanalítico ou o confessionário. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

O último negativo