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A mostrar mensagens de setembro, 2025

Morte programada

O capítulo 33 de Desejar Desobedecer , de Didi-Huberman, é dedicado ao Gueto de Varsóvia: “No interior desses muros, a população judaica foi deliberadamente submetida pelos nazis à fome. Começou, nessa altura, a morte programada de todo um povo.” É difícil não pensar em Gaza. Adenda:  Nem de propósito, a edição de hoje do Público  (21 de Setembro) traz uma longa entrevista com Didi-Huberman. O pretexto é justamente o livro Desejar Desobedecer . Uma passagem: “a actualidade é a continuação da História por outros meios. É fundamental trabalhar sobre a questão da História e de uma forma permanente. O horror de Gaza não nos deve [levar a] considerar o horror da Shoah como coisa do passado. Não concordo nada com essa ideia. É a mesma história, é a mesma história. O passado nunca passa.”

Eu e o Príncipe ficamos a assistir

A certa altura, a Rainha chama o caçador e manda-lhe que represente a cena do assassínio fingido de Branca de Neve: Como se fosse verdade, representa-nos aqui a cena da Branca de Neve em perigo na floresta. Faz como se a quisesses matar. E tu, menina, foge como se fosse a sério. Eu e o Príncipe ficamos a assistir, censurando-vos se fordes demasiado mansos no desempenho dos papéis. Ora bem, começai. De repente, Hamlet irrompe no conto de Walser . A peça dentro da peça, outra vez. Fantasmas por todo o lado.

Selfie XXVIII

Atravesso a avenida para entregar um cheque do Lidl ao tipo que arruma carros nas Finanças. Ele agradece, depois olha-me de cima a baixo e pergunta que número calço – quer oferecer-me umas botas que encontrou de manhã, ainda em bom estado.

Trabalho de mesa

A actriz lê uma fala da Gata Borralheira para a Primeira Irmã: Estou aqui sempre a teus pés. Deixa que beije a tua mão, doce mão que nunca me bate salvo por justo castigo. Teus olhos miram-me como um sol. Sou a terra que vive do bondoso beijo e que outra coisa nunca poderá fazer senão, deleitada, florescer ao teu encontro. A actriz interrompe, de súbito, a leitura e comenta: «Isto é tão perverso!»

Lavar e estender a roupa

Ontem, esteve um dia bonito: aproveitei para lavar roupa e pô-la a secar. À noite, havia ainda algumas peças ligeiramente húmidas. Ficou tudo no estendal. Hoje, e contrariando a previsão meteorológica, o dia nasceu cinzento e debaixo de uma chuva miudinha. A roupa está encharcada. Nisto, como em quase tudo, não adianta ser optimista ou pessimista. O mais “sensato” é ser beckettiano.

On ne peut pas éviter de l’écouter

Acho o filme ao mesmo tempo belo e fútil. Creio que as pessoas que não gostam do filme são virgens do próprio desejo e exercem a sua miséria como forma de condenar aqueles que estão sempre prontos a afundar-se nesse estado primordial que partilham com as feras, os loucos, a maioria — a tentação do amor. M.D. Le Navire Night , de Marguerite Duras. Projecção no Cinema Batalha, às 17H15 na sala2.

Hoje não aconteceu nada

Sexta-feira, 29 de Janeiro de 1915 Deverei dizer “hoje não aconteceu nada”, como costumávamos fazer quando os nossos diários começavam a morrer? Não seria verdade. O dia de hoje é muito parecido com uma árvore nua: tem toda a espécie de cores, se se olhar com atenção. Virginia Woolf, Diário - 1915-1926 . Tradução Maria José Jorge.

e ainda hoje vou

«Ao sair, depus na mão do criado uma nota de cem. Ele devolveu-ma dizendo que estava habituado a valores mais elevados. Pedi-lhe que se contentasse com menos, só desta vez. Lá fora, esperava-me um carro que me levou dali, e assim fui e ainda hoje vou.»  O jantar de Robert Walser. Trad. de José Maria Vieira Mendes. Revista Ficções, Tinta Permanente, 2002.

Dramoletes

A palavra dramoletes, inventada por Bernhard, caracteriza uma forma, forma breve, peça curta. E transporta também um traço de humor, ligando forma dramática a omeleta, comida rápida – Bernhard na última longa entrevista, concedida a Kurt Hofmann ( Em conversa com Thomas Bernhard , Assírio e Alvim, trad. de José A. Palma Caetano) fala com frequência de fazer omeletas. Estes dramoletes são um conjunto de sete “omeletas”, uma omeleta de omeletas, todas elas aliás de composição diversa além da brevidade temporal e da concisão dramática. (...)

As alegrias em cadeia da tradução

Voltei a Cioran. Estou a traduzir mais alguns dos empolgantes Exercícios de Admiração (o outro lado do filósofo sinistro). Quando encontrei a citação de The Crack-Up , fui buscar a versão de Aníbal Fernandes ( A Ferida Aberta , Hiena, Janeiro de 1986) e, ao folhear o livro, descobri a expressão estar na fossa na página 65. Apesar de me ocorrer muitas vezes, nunca tive coragem de a usar nos textos de Cioran, porque é demasiado moderna. Encontrá-la no livrinho maldito de F. Scott Fitzgerald pareceu-me um sinal inequívoco de pensamento circular.