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ZOV #2

Rui Manuel Amaral é um escritor cheio de dúvidas e isso é uma sorte. Só alguém assim, tão ferido na fé literária, consegue escrever histórias que ainda nos atiram ao chão. A numero dezoito (páginas 91 e 92) é exemplar: parece um andaime precário em redor de um edifício destruído há muito, tomado pelas heras. 

Beckett e Cioran passaram uma noite a discutir a tradução da palavra lessness para francês. Não conseguiram. É uma tarefa impossível. Pois bem, este pequeno texto de Rui é a representação desse substantivo que nos foge. Começa com uma sombra e acaba num esgar de riso amargo.

O narrador começa por lançar os dados, mas os dados fogem; começa a urdir uma trama, mas a trama desfaz-se. Ele é teimoso, continua uma e outra vez, sem receio, sem sair do sítio. Vacilar é a arte dos juncos e ele faz-se junco e ventania. No fim, chega ao vazio total. É onde estamos todos.


 DEZOITO

Uma sombra veloz atravessa a cena.
Não, não apenas uma sombre, obviamente. Um homem e a sua sombra atravessaram a cena. A sombra não existe sem o homem.
Pois bem, um homem e a sua sombra atravessaram a cena da direita para a esquerda.
Não, foi ao contrário: da esquerda para a direita. Um homem e a sua sombra atravessaram a cena da esquerda para a direita.
Não, não, o homem não correu. O homem não correu da esquerda para a direita nem da direita para a esquerda. O homem estava parado.
Não, não é rigoroso afirmar que o homem estava parado. O coração do homem batia, o homem respirava, os ombros subiam e desciam.
Não, o coração não batia e não havia um único músculo que mexesse. O homem estava morto. Um morto em pé.
Não, o morto não estava em pé. Estava sentado. O homem morto estava sentado numa cadeira.
Não, não, não. Não existia nenhum homem morto, mas apenas a cadeira, no centro da cena.
Não, não havia cadeira nenhuma, apenas um lugar vazio. Se havia um homem e uma cadeira, estavam fora de cena. O lugar estava vazio. Isso. O lugar estava absolutamente vazio.
Não, não havia lugar. Não havia nada. Nada, nada, nada.

O morto chamava-se Charles Cros?
Não.
O homem era Nicolai Ivánovitch Sérpukhov?
Não, não. Eu disse: não havia homem nenhum. Não havia nada.

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