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Mensagens

Gustav

Aparentemente, Gustav era um anjo igual aos outros. Uma criatura de grande virtude, bondade, graça e encantadora frescura, com longos caracóis louros presos por uma fitinha azul, e níveas asas, amplas e saudáveis. No entanto, havia algo que o distinguia dos outros anjos: tinha medo das alturas. Quer dizer, sofria horrivelmente de vertigens. Ora aqui está como o destino, com o seu braço um tanto comprido, está sempre pronto a fazer das suas. Quantos mistérios há nos céus e na terra! Ora, esta espécie de maldição era a causa de incontáveis dissabores. As vertigens impediam-no de permanecer muito tempo acima das nuvens. Começava a sentir tonturas, calafrios, náuseas, toldava-se-lhe a visão e era atacado de gaguez. Por isso, sempre que podia, e a coberto de uma desculpa qualquer, vinha deitar-se na terra, debaixo do sol. E embora Deus, por delicadeza, por decência, por cordialidade, por pudor, enfim, por misericórdia, não mostrasse abertamente a sua insatisfação, Gustav achava-se imped

Próximo sábado, 1 de Outubro, pelas 17h00

No próximo sábado, 1 de Outubro, às 17h00, damos início a mais uma temporada de Leituras do Gato Vadio. Para começar, mergulhamos de cabeça nos textos do genial Kurt Tucholsky. A convidada é a Clara Riso. A imagem da leitura é do Luís Nobre, da dupla Lina&Nando .

Os pés de Elena Ferrante

Quebro muitas vezes a regra de só falar daquilo que sei pelo menos alguma coisa. Seguir uma intuição é menos do que seguir o rasto de um avião, mas não me sai da cabeça uma ideia sobre a escrita de Elena Ferrante. Nem sequer é bem uma ideia, não passa de uma hipótese ou até um desejo pateta. Acabei "A amiga genial" e estou à espera que me emprestem os outros livros. Entretanto comprei "Crónicas do mal de amor" e foi quando comecei a ler o primeiro romance que isto começou a insinuar-se. Entre esses romances (1992) e a tetralogia (2011) há uma mudança — não diria de estilo mas de mão. É como se Elena Ferrante tivesse começado a escrever com a mão de Lilla (prodigiosa) e depois mudasse para a mão de Lenu (geométrica). Para criar um pouco de inquietação, agora gostava que Ferrante começasse a escrever com os pés. Isto continua a ser um elogio, claro. Cristina Fernandes

A ideia ocorreu-me uma vez:

se se queria aniquilar, esmagar, castigar um homem de modo bastante implacável, para que o pior bandido tremesse de medo antecipadamente, bastaria dar à sua tarefa um carácter perfeitamente absurdo, de absoluta inutilidade. Os trabalhos forçados actuais, apesar de não apresentarem qualquer interesse para o preso, nem por isso são desprovidos de sentido. O forçado-trabalhador faz tijolos, cava o solo, tritura o gesso, reboca construções, e nesses trabalhos aplica a inteligência e tem um fim. Às vezes chega a interessar-se pela sua obra e a procurar fazê-la melhor e mais habilmente. Mas se o empregarem, por exemplo, a transvasar água de uma vasilha para outra e desta para a primeira, a britar pedra ou a transportar montes de terra de um lugar para outro, para os voltar a pôr, em seguida, no seu lugar inicial, julgo que ao fim de alguns dias se estrangulará ou cometerá mil delitos, a fim de merecer a morte ou escapar a semelhante rebaixamento, a semelhante vergonha, a semelhante tormento.

Advertência ao meu editor

De todas as cartas que tenho recebido de leitores, meu caro Mestre [editor] Rowohlt, é esta a que me parece melhor. Vem de um aluno dos últimos anos duma escola técnica de Nuremberga. «Caro senhor Tucholsky: Permita-me que lhe expresse o meu total apreço pelas suas obras. Já sei que isso a si tanto se lhe dá, mas eu gostava de fazer ainda outra observação. Oxalá morra nos tempos mais próximos para os seus livros ficarem mais baratos (como Goethe, por exemplo). O seu último livro é mais uma vez tão caro que ninguém lhe consegue chegar. Cumprimentos.» Ora toma! Caro Mestre Rowohlt, caros senhores editores! Façam-nos os livros mais baratos! Façam-nos os livros mais baratos! Façam-nos os livros mais baratos! Kurt Tucholsky, Hoje entre ontem e amanhã . Tradução de Renato Correia. Sábado, 1 de Outubro, 17h00, no Gato Vadio.

A nossa literatura é cheia de possibilidades

Deitei as mãos ao meu primeiro livro de Elena Ferrante na semana em que o Presidente da República recomendou ao primeiro-ministro e ao líder da oposição a leitura da tetralogia napolitana. Desviá-los de caminhos e palavreado gastos, encontrar a política em sítios inesperados. Ah, conseguissem eles ganhar a tarefa! Levada pelo acaso e pela ironia, apropriei-me do conselho. Avancei com cautela; não valeu de nada, rapidamente caí no turbilhão. Não nos aproximamos de Ferrante de mansinho. Acho que toda a gente já o disse: a escrita de Ferrante é clara, pungente, voraz. As frases sucedem-se de forma muito exacta; cada palavra é necessária e até as repetições são construídas sem rodeios. Ferrante gosta de ângulos muito fechados; imagino-a com um lápis aguçado, uma régua e um esquadro (agora que penso nisso, parece-me que o conceito de desmarginação — ausência total de ângulos — de Lila pode ser uma manobra para domar o espaço). Talvez estes livros nos ensinem a desenhar cidades mais justa
Kurt Tucholsky.

Isso só não chega

Estamos presos na nossa época como num pequeno lugarejo - vigiados por todos os lados, sempre nas bocas do mundo, toda a gente se conhece e mete o nariz na vida alheia - não há fuga possível. Chega-se às vezes a um ponto que só saindo da nossa época. (...) Mas se isso fosse possível, talvez acabasse uma coisa: a mania das grandezas própria de todas as épocas. O mundo está cheio de provincianos do tempo, de gente que nunca saiu da sua época, que nunca viu outra coisa que não os seus míseros setenta anos. Relatos de viagem já eles leram, ou seja, compêndios de História - mas isso só não chega. Que bem lhes faria se deixassem os ventos do tempo zunir-lhes aos ouvidos. Kurt Tucholsky, Hoje entre ontem e amanhã . Tradução de Renato Correia.

Adivinhas

Quem é, quem é? Dramaturgo, prosador, ensaísta, crítico austríaco e bêbado trimestral, nascido em 1863. Quem é, quem é? Torneiro de profissão, um dos fundadores e mais importantes dirigentes do movimento social-democrata sueco, católico e dono de um tapete persa. Quem é, quem é? Almirante na 1.ª Guerra Mundial e comandante supremo da Marinha francesa, de 1920 a 1924. Nasceu em Marselha, a 13 de Julho de 1866, com umas ventas enormes. Quem é, quem é? Homem de estado italiano, advogado e jornalista. Várias vezes primeiro-ministro e ministro em quase todos os governos, entre 1956 e 1973. Não se sentava em poltronas. Quem é, quem é? Cabelo cortado à escovinha, olhos míopes e barriga em forma de pêra. Membro da DVP, destacou-se na defesa da «lenda da punhalada nas costas».

P.

L. imagina P. sob o aspecto de um homem baixo e loiro, com um bigode de foca, um chapeu de côco demasiado pequeno e uma sobrecasaca fora de moda que abotoa e desabotoa continuamente. D. imagina-o como um senhor grave com enormes bigodes pretos. Seja como for, ambos estão errados.

Breve esclarecimento sobre as árvores

É sabido que, de todos os seres que habitam o planeta, as árvores são os mais reservados, sensíveis e esquivos. Não existem outros iguais, nem sequer parecidos. Para o provar, basta lembrar o limitadíssimo número de humanos que conseguiu observar duas árvores a fazer amor. Para além de mim, apenas mais três ou quatro pessoas, incluindo, segundo creio, Mozart*. Os seus transportes amorosos são regidos pelo mais profundo segredo. As árvores têm um faro muito apurado e nem por um só instante se deixam surpreender. Armadas de infinita paciência, esperam durante anos pelo momento certo para gozarem tranquilamente os doces prazeres, em dias de pesado e denso nevoeiro. O tema tem sido, por isso, campo fértil para a imaginação e a fantasia, existindo teorias para todos os gostos, algumas das quais bastante engenhosas e extraordinárias. Para esgotar duma vez este assunto e desembaraçar-me dele para sempre, vou descrever os factos tal como os testemunhei, deixando aos leitores o encargo de for

Oh, my stomach, my stomach.

Two chairs were placed side by side in the middle of the room. There the heroes were seated while the partisans ranged themselves right and left, waiting for the wits to sparkle and flash. Joyce said, ‘I’ve headaches every day. My eyes are terrible.’ Proust replied, ‘My poor stomach. What am I going to do? It’s killing me. In fact, I must leave at once.’ ‘I’m in the same situation,’ replied Joyce. ‘If I can find someone to take me by the arm. Goodbye!’ ‘Charmé,’ said Proust. ‘Oh, my stomach, my stomach.’ William Carlos Williams.

Espíritos cultivados

Um espírito cultivado como esse não tem verdadeiramente interesse para mim. Admiro-o, aprecio tous les soins et les peines que foram necessários para o produzir - mas deixa-me fria. Afinal de contas, a aventura está terminada. Agora já não resta nada a fazer senão podar, aparar, ligar as ramadas - e todos estes labores são um pouco deprimentes. Não, não, os espíritos que amo devem conservar ainda certos cantos selvagens, a desordem de um pomar onde os sombrios abrunhos roxos chovem sobre a erva pesada, um pequeno bosque crescendo ao abandono, a possibilidade de uma cobra ou duas (cobras verdadeiras…), um lago a que ninguém sondou a profundidade e atalhos, atalhos recamados dessas pequenas flores plantadas pelo espírito… É necessário também que tenha esconderijos verdadeiros e não menos artificiais, belvederes ou labirintos. Nunca encontrei um espírito cultivado que não tivesse alamedas arborizadas. E eu detesto, abomino as alamedas arborizadas. Katherine Mansfield, Diário . Traduçã

Atum, cachucho e cavala

António Maria de Oliveira Bello (OLLEBOMA), Culinária Portuguesa , Edição do Autor, Lisboa, S.d.

Aquilo em que ninguém reparara antes

Ninguém sabia de onde viera nem como chegara à cidade. Apareceu aqui um belo dia e foi tudo. O mais certo é ter caído das nuvens ou brotado do chão como uma erva rara. O fio do mistério começava justamente neste ponto. Passava os dias e as noites sentado nas esplanadas a enrolar cigarros e a espiar vagamente o plácido curso das horas. Fazia lembrar – que os grandes mestres da literatura me perdoem – um morno e indolente gato ao sol. De vez em quando pegava num livro, sem intenção de ler, abria-o ao acaso e punha-o logo de parte. Depois, engolia uma cerveja sem parar para respirar e ficava a olhar saudosamente para o copo vazio. Metia conversa, gracejava, contava anedotas no melhor dos ânimos. E quando era convidado para uma partida de cartas, não só não furtava ao jogo, como ainda dava gratificações aos empregados. Penso que tudo isto é o que se pode chamar um procedimento esquisito. Intrigados, muitos de nós começaram por conceber teorias fantasistas e abracadabrantes, rejeitando um
Jean Paul, retratado por Heinrich Pfenniger, 1797-1798.