O Governo decretou a «libertação total do país», a partir de 1 de Agosto. Os jornais falam em «caminho da libertação», «plano de libertação», «libertação da sociedade e da economia». Com um pouco de imaginação, até conseguimos ouvir os ventos da Normandia a soprar nas praias da Foz.
Acho que estavam a falar de obras. Ele disse cinza é uma cor morta, de forma categórica. Continuaram a conversa, mas já não ouvi mais nada — a frase abalou os meus princípios cromáticos. Ele está certo.
Do outro lado da janela, o mar interminável de telhados. Gaivotas e bandeiras azuis nos estendais. Aviões e guindastes, papagaios de papel. O contínuo marulhar dos pneus na rua. Deste lado da janela, «nadar, nadar, nadar, para não morrer afogado.»
Uma folha branca está cheia de caminhos. Já se sabe, será preciso ir da esquerda para a direita. Já se sabe, vai ser preciso andar muito, penar muito. E sempre da esquerda para a direita. Também se sabe - às vezes - previamente: quando a página estiver escurecida pelos signos, será preciso rasgá-la. Será preciso refazer o mesmo caminho dez vezes, cem vezes; o caminho do nariz, da nuca, da boca; o caminho da fronte e da alma. E todos esses caminhos têm os seus próprios caminhos. - Caso contrário, não seriam caminhos. Edmond Jabès, O Livro das Questões . Tradução de Pedro Eiras.
Julian e Bradley já começaram a falar de Hamlet, mas não tenho coragem de interromper a leitura d’ O Príncipe Negro e passar a Shakespeare para um exercício diletante de montagem paralela; é difícil resistir à escrita sedutora de Iris Murdoch (e à tradução exemplar de José Miguel Silva). Para mais, acabei de chegar à cena das botas roxas. Se fosse eu a decidir, era as botas que punha na capa — segundo o meu critério sofisticado , só faltava isto para considerar Murdoch uma verdadeira filósofa.
Fui vaguear para as ruas dos duques. Ao passar à porta do café Asa de Mosca, lembrei-me da pretensão recente de traduzir avoir le cafard por estar com a mosca; não deu em nada porque a expressão já está tomada. É pena. Mesmo assim, se tivesse de me encontrar com Cioran aqui no Porto, era no Asa de Mosca. Depois podíamos ir ao Prado do Repouso — ele era capaz de apreciar o nome e ainda alguns arroubos arquitectónicos que por lá se vêem. Quando saí do cemitério comprei vinho (os tais de altitude ) e flores.
Matilha ou súcia são palavras boas para descrever certos movimentos nas redes sociais. (José Pacheco Pereira já deve ter adquirido os direitos de utilização.)
Segunda dose da vacina. Enquanto aguardo a minha vez, ocorre-me que a sala de espera é uma metáfora possível destes quinze ou dezasseis meses (já perdi a conta) de pandemia. O nosso pequeno mundo — a casa, as ruas, a cidade — converteu-se numa sala de espera. Mas temos estado verdadeiramente à espera de quê? O que há do outro lado da porta? Queremos mesmo saber?
Depois d’ A Cabeça Decepada , comecei logo a ler O Príncipe Negro . Mas o excesso de Iris Murdoch pode causar danos (já tinha sido avisada), por isso pousei o livro e fui pesquisar capas , para desanuviar: além das banais, a da Warner é horrível e cómica; a da Lumen é um bocado pretensiosa (não só esta, mas todas as que têm rostos de mulheres ), pelo contrário, uma versão antiga da Penguin com a rapariga azul e o selo vermelho é perturbadora e só por isso ganha uns pontos; a chinesa e a da Vintage Classics são bonitas (a chinesa também é delicada); nenhuma tem a Post Office Tower (quando os desenhadores gráficos não lêem os livros na íntegra, passam ao lado das potencialidades freudianas). Entretanto o carteiro trouxe o outro príncipe, Hamlet — ficam os dois juntos e em repouso mais um tempo a ver o que acontece. Street level view of the newly completed Post Office Tower, July 1965 (CM 22/195)
No jornal de domingo, o antropólogo James Suzman explica que não existe nenhuma sustentação antropológica para a nossa obsessão com o trabalho duro. O trabalho árduo não compensa em termos económicos e não nos torna mais felizes: «Não é por teres dois empregos que vais realizar os teus sonhos. Esta ideia do sonho americano, de que qualquer um, desde que trabalhe arduamente, pode ser o que quiser, é pura falácia.» No dia anterior, sábado, o mesmo jornal publicava uma reportagem sobre três jovens «viciados no trabalho»: «Carina trabalha entre 80 e 84 horas por semana, Miguel sai de casa às 6h30 e só regressa à meia-noite e Frederico embarcou numa viagem transformativa para se redimir do vício no trabalho. Têm todos menos de 30 anos e respiram trabalho. Fazem-no por paixão e auto-reconhecimento.» Uma das jovens, Carina Ribeiro, de 26 anos, diz que vai ter tempo para descansar «quando for mais velha».
Uma Cabeça Decepada é muito divertido, no sentido mais filosófico de diversão. Há sete personagens fechadas numa teia que vão trocando de posição: ora são moscas, ora são aranhas. Discutem os valores morais e com quem vão para a cama — sempre num inglês extremamente correcto. Convergem e divergem. Bebem muito. Podia ser uma peça de teatro ou até uma ópera. Em vez de batuta, Iris Murdoch usa uma espada de samurai (fica-lhe bem). Também dá para fazer muitos sublinhados; frases que podem ser gravadas na pedra e conceitos para guardar no bolso como o da cabeça decepada e o amor sem trajecto (os dois definidos por Honor Klein — que nome formidável! — na página 198). Foi uma semana de férias maravilhosa.
Já passa das duas da manhã. Ainda estou a remoer O Signo do Leão , a primeira longa-metragem de Éric Rohmer, que fomos ver ao Campo Alegre. Claro que não é a nódoa de gordura nas calças de Pierre Wesselrin que determina a sua «queda». Mas essa espécie de mancha original, impossível de limpar ou disfarçar, incrusta-se de tal maneira no personagem que, a certa altura, confunde-se com ele. Pierre Wesselrin transforma-se numa mancha indesejável, um ponto sujo na paisagem burguesa de Paris.
Um dos candidatos à Câmara de Lisboa promete transformar a cidade numa «verdadeira fábrica de unicórnios» . O unicórnio, sabemo-lo pelas Escrituras, foi das poucas criaturas que não entrou na Arca de Noé, não alcançou o Monte Ararat e não escapou ao dilúvio. Deus deve estar furioso.
Um dos grandes personagens da literatura pícara, Dom Pablos — El Buscón , de Francisco de Quevedo —, «exemplo de vagabundos e espelho de velhacos», inicia a sua longa carreira de trafulha depois de coroado «Rei de Galos». O tempo avança em brandas elipses.
Uma conhecida colunista do jornal Observador queixa-se de que vivemos sob uma espécie de «ditadura social-sanitária»: «Somos as cobaias de uma nova forma de governar: o social-sanitarismo.» Leio isto e ocorre-me, de imediato, a maravilhosa sequência do jantar burguês em O Fantasma da Liberdade . Os comensais instalados em sanitas e satisfazendo livremente as suas necessidades fisiológicas à mesa. Quando têm fome, levantam-se e fecham-se na casa de banho para comer.