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Mensagens

Onde vamos livres Onde vamos presos correr como rios durar como pedras e lançar raízes  António Reis, poemas quotidianos (edição da Tinta da China).
 

Gente palradora

Conta-se esta história a propósito de Arnold Böcklin, seu filho Carlo e Gottfried Keller: um dia estavam na taberna, como habitualmente. As suas libações eram conhecidas desde longa data pelo carácter fechado e taciturno dos convivas: uma vez mais encontravam-se calados. Após um longo momento, o jovem Böcklin observou: «Está calor», e um quarto de hora depois, o velho: «Há falta de ar.» Keller, pelo seu lado, esperou um momento; a seguir levantou-se, proferindo as seguintes palavras: «Não quero beber com gente tão palradora.» Walter Benjamin, a propósito de Robert Walser.

Estilo para os literatos

Falam do meu “estilo”. Mas o meu estilo não me interessa rigorosamente nada. Tenho qualquer coisa para dizer, digo-a, e é o que digo que conta; a maneira de o dizer é secundária. O ideal seria escrever sem estilo; esforço-me e hei-de lá chegar. Só o pensamento importa. O resto é para os literatos. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972
Tenho oitenta páginas de notas sobre o politeísmo. Mas para fazer delas um artigo, é preciso um impulso que me falta. Adoro os esboços, a preparação, os trabalhos de aproximação. Não me peçam mais!  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972
 

Cinéma vérité

Um filme com tantas coisas interessantes — o mar, livros, pernas, vasos de porcelana,... — e fui logo reparar nas manchas na camisa azul de Daniel. Depois da nódoa de gordura nas calças de Pierre Wesselrin  e dos salpicos de tinta nos jeans de Chloé , parece-me que há um padrão que merece ser investigado — para além da moral, ou imanente à moral?  Por outro lado, isto é, se invertermos a perspectiva, talvez as manchas digam mais sobre quem as descobre do que quem as exibe? Sim e também pode ser o princípio de um novo tipo de crítica cinematográfica. Allons-y!

Três dias

Ainda tenho três dias de trabalho pela frente. E só depois, finalmente, duas semanas de férias. Quinze dias sob o sol tórrido de Agosto. O sonho molhado de qualquer trabalhador. Ah, o prodigioso fruto que tão generosamente me dão a colher, após meses e meses amarrado à secretária, obediente como um cavalo.

Pequena crónica de costumes

Ontem fintei o hábito e vesti uma blusa às florzinhas. Mesmo assim não consegui bater a elegância das personagens d' O Joelho de Claire (deve ser influência do lago de Annecy). Enquanto bebia o café junto às escadas de Ricardo Jorge, vi uma mulher a sair do bingo com um vestido de padrão vichy azul — parecia uma das clientes habituais do Trindade antigo; tinha pinta para o filme de Rohmer mas trocou o cinema pelo jogo.  Para A Coleccionadora , levo a t-shirt da praia.

Livro de estilo

Título de uma notícia do Correio da Manhã : «Braço trucidado de jovem morto viaja 30 km de comboio na Linha da Azambuja.» O Correio da Manhã podia ser o meu jornal de referência. Bastava que adoptasse o clássico Notícias em Três Linhas , de Félix Fénéon, como o seu  Livro de Estilo .

Manchas de tinta

Dava para fazer um desfile com as roupas que aparecem em L’ amour l’après-midi : as camisolas de gola alta de Frédéric, a camisa axadrezada que a empregada o convence a comprar (fica-lhe bem), os jeans e os variados casacos de Chloé, o vestidinho burguês de Hélène, o casaco verde de Martine, o fato azul claro que Chloé veste para impressionar Frédéric ou os vestidos camiseiros que experimenta na loja onde trabalha, os conjuntos das mulheres que se cruzam com Frédéric na rua ou no sonho, etc., etc..  Eric Rohmer preocupa-se tanto com o guarda-roupa (percebe-se bem o título do texto que ele escreveu sobre O Rio , de Jean Renoir) que acrescenta pequenos defeitos na roupa de Chloé: o casaco vermelho forrado a pelo descosido no ombro direito e umas manchas de tinta na perna esquerda dos jeans desbotados. Quase não se vêem, mas parece que é aí, mesmo à superfície, que se esconde o segredo inefável de Chloé (ou de Zouzou, vá-se lá saber).

Verão

Sensorium

A aula sobre Hamlet é um amontoado de ideias brilhantes. Bradley deixa-se levar por uma corrente que não sabemos nunca se é um delírio intelectual ou um sentimento ou tudo ao mesmo tempo (Iris Murdoch é suficientemente generosa para nos permitir a ambiguidade como um deleite). Mas uma coisa percebemos sem sombra de dúvida: as palavras são um dispositivo sensorial poderoso; entram no nosso corpo como uma espada.

O privilégio de compreender a vulgaridade de Shakespeare

Há várias referências a Hamlet e Shakespeare n’ O Príncipe Negro , as que me interessam mais são estas quatro:  Na página 141 (edição da Relógio d’Água), Julian e Bradley encontram-se por acaso na rua e acabam por falar outra vez sobre Hamlet. Digamos que é um divertimento provocador ao ar livre; uma ocasião propícia aos simbolismos (antecede a oferta das botas roxas a Julian); aquilo que mais tarde, no relatório policial, transforma-se num momento crucial para a acção, ou seja, a desgraça. A aula, propriamente dita, começa na página 170 e já dispõe de cadeiras, mesa e livros. Aqui Bradley supera-se (só não sei se é na própria altura em que tudo acontece ou depois quando descreve a situação):  «Porque Shakespeare conseguiu, através da pura meditação sobre o tema da sua própria identidade, criar uma nova linguagem, uma retórica especial da consciência…» (…) «O ser de Hamlet é feito de palavras, tal como o de Shakespeare.»  « Palavras, palavras, palavras .»  «Há alguma...

Limpeza

A coberto da noite, alguém pintou um grafíti anti-colonialista «de 20 metros» no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa. Escândalo e comoção! As autoridades não perderam tempo e organizaram, rapidamente e em força, a limpeza do infame grafíti. O presidente da câmara tranquilizou a população: «A melhor resposta que se pode dar a quem vandaliza o património é a limpeza imediata.» Os jornais informaram que a «limpeza imediata» foi efectuada por uma «empresa especializada» e custou «2300 euros mais IVA (2829 euros, no total)». Os trabalhadores negros contratados pela «empresa especializada» limparam prontamente o grafíti anti-colonialista.

Impedem-me de dormir

Sabiam que vivo obcecado por dois monstros? Eles tornam-me a vida praticamente impossível: são eles Charlie Chaplin e René Clair… À medida que avançávamos na construção do nosso argumento, acontecia-nos por vezes ficarmos bastante satisfeitos com o nosso trabalho, com as nossas descobertas, mas não por muito tempo! No dia seguinte, coçava a cabeça e dizia: o Charlie já pensou nisto, há vinte e cinco anos! Ou então: René Clair fez isto naquele filme!... Depois deles, o cinema tornou-se quase impossível!... Juro-vos que me complicam a vida e impedem-me de dormir. Vittorio De Sica, a propósito de O Milagre de Milão , citado por André Bazin (folha de sala da Medeia).