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Mensagens

Fogo lento

A admirável poetisa norte-americana Adrienne Rich salientou numa conferência sobre poesia que, «este ano, um relatório da Agência de Estatísticas da Just indica que um em cada 136 habitantes dos Estados Unidos se encontra atrás das grades —muitos em prisões, inculpados». Nessa mesma conferência, citou o poeta grego Yannis Ritsos: Lá fora, a última andorinha demorou-se até mais tarde, suspensa no ar como uma fita preta na manga do Outono, e nada mais ficou. Só as casas queimadas, ardendo ainda em fogo lento. Entretanto , de John Berger. Tradução de Júlio Henriques. Antígona. Outubro 2018.

Organizar o pessimismo

Na própria época - de 1933 a 1940 - em que Walter Benjamin evocava essa possibilidade de «organizar o pessimismo» mediante o recurso a certas imagens ou configurações de pensamento alternativas, a vida quotidiana certamente não o poupava a preocupações. Será que conseguimos imaginar o que era a vida desse judeu alemão «sem recursos», em fuga permanente ante o cerco que se fechava à sua volta? A impressão de Agamben sobre a destruição da experiência da nossa vida quotiana, alegadamente mais «insuportável» do que «em momento algum do passado», deverá, pois, ser ponderada a partir deste contraste. Um contraste ainda mais evidente na medida em que Benjamin soube «organizar o seu pessimismo» com a graça dos pirilampos, procurando, por exemplo, entre o teatro épico de Bertolt Brecht e a deriva urbana dos poetas surrealistas, entre a Biblioteca Nacional e a Passagem dos Panoramas, esse «espaço de imagens» capaz de contradizer a polícia - as terríveis coações - da sua vida. A cotação da exper

E continua

Na página 47:  «Natalie procurava o seu caminho nessa linha de pensamento: arrancar a música da dependência da máquina — mas por máquina ela também entendia a grande orquestra sinfónica e a produção de grandiosas óperas. Mas não pretendia o retorno ao «simplismo» — o cantor popular com banjo e pretensa voz de Kentucky; afirmava que a complexidade é essencial na grande arte, mas que essa complexidade deveria estar na música e não nos meios de a produzir. Disse-lhe que isso me lembrava Einstein, que fez tudo com um lápis e algumas folhas de papel e a sua cabeça, em vez de usar um ciclotrão de cinquenta milhões de dólares; os ciclotrões são muito rigorosos, mas, basicamente, Einstein era ainda mais rigoroso e muito mais barato. Ela gostou da ideia.»

Aproximar as coisas que nunca foram aproximadas

A maior parte das coisas interessantes que leio sobre cinema não foram escritas intencionalmente sobre cinema. Na página 26 de   Tão Longe de Sítio Nenhum , de Ursula K. Le Guin, apanhei um parágrafo que se aplica aos meus filmes preferidos e, mais adiante, uma óptima descrição do trabalho de Godard: De facto, pode dizer-se que a música é um outro modo de pensar, ou talvez pensar seja uma outra forma de música .

Selfie XIX

Às vezes tenho a ilusão tão nítida que sou iraniana, japonesa, turca, romena, argentina, russa, paquistanesa, ucraniana, angolana, finlandesa, coreana, brasileira, nepalesa,…

Tremor

Sala de espera do Centro de Saúde. De repente, a terra treme. Todo o edifício treme. As pessoas olham aterradas umas para as outras. Boca escancarada, olhos esbugalhados, como se tivessem sido surpreendidas por um sismo fatal, longe de casa, longe das pessoas que amam. Depois, o abalo passa. Alguém comenta que são as obras do metro. A máquina avançou mais uns centímetros nas profundezas da terra. Todos se recompõem e agem como se nada tivesse acontecido. Olham de novo para a televisão, para o telemóvel, para o risco na parede branca. Volta a dor na cabeça, a garganta inflamada, a ponta de febre.

Real punk almost in reverse

Se fizesse um filme de ficção (autobiográfico, como convém a quem não sabe fazer filmes? ou uma historiazinha marada de Walser?). Bom, se fizesse um filme de ficção, usava as  The Shaggs  como música diegética («um filme a sério só tem música diegética»). A música seria como a película negra do Chris Marker: uma imagem de alegria sem explicação. Podíamos ver o filme de olhos fechados. Podíamos adormecer.

No século XVI, uma garce era uma rapariga

Helena Tecedeiro: Um exemplo que a Camille dá também é como ao longo dos tempos garce , que eram simplesmente o feminino de garçon  passou a ser pejorativo. Nunca tinha pensado nisso.  Camille Laurens: Julgo que a maioria das pessoas não sabe isso. Porque no século XVI, uma garce  era uma rapariga. E como é que evoluiu? Garçon  nunca foi um insulto, mas garce  tornou-se um insulto, porque o feminino desvaloriza imediatamente. E há toda uma lista de palavras que, no masculino ou no feminino não têm de todo o mesmo significado. Por exemplo coureur  é alguém que corre, coureuse  é uma mulher fácil, que engata homens. Um maître  é um mestre, uma maîtresse  é uma amante. [ Alors, notre objectif dans la langue française est d'être une garce une coureuse une maîtresse. Il faut être trois pour être une. ]

Metáforas vegetais de carácter claramente sexual

«Leyla Perrone-Moisés, em um estudo intitulado Balzac e as flores da escrivaninha (...) demonstra que uma descrição nem sempre é uma temática vazia; ao contrário, (...) as «páginas descritivas não representam uma parada da narração; elas contam coisas, as coisas que são censuradas nas páginas narrativas». Por isso as descrições balzaquianas são entendidas como metáforas – vegetais – de caráter claramente sexual. Os desejos sexuais do jovem Felix de Vandenesse pela Madame de Mortsauf [em O Lírio do Vale ] são metaforizados nos buquês de flores que ele oferece a ela.» Marisa Martins Gama-Khalil, Lar Amargo Lar.

94 personagens a desinquietar Alice

Lista de personagens que espreitam ou entram em cena em Eu sou uma rapariga sem história , de Alice Zeniter:  Ursula Le Guin, Elizabeth Fisher, Aristóteles, Péricles, Marguerite, Friedrich, Louis-Ferdinand, Séléné, Antinoos, Briséis, Alison Bechdel, Liz Wallace, Estrunfina, Katha Pollitt, Peyo, Castafiore, Tintin, Ulisses, Penélope, Shrek, Eddie Murphy, Med Hondo, Joyce, Robbe-Grillet, Gombrowicz, Musil, François Hollande, Emmanuel Macron, Umberto Eco, Anna Karénina, Madame Bovary, Princesa de Clèves, Enjolras, Marius, Cosette, Jean Valjean, Victor Hugo, Watson, Sherlock Holmes, Frodo, Peter Jackson, Artagnan, Pipi das Meias Altas, Harry Potter, Dom Quixote, Pirandello, Cortázar, Batman, Super-Homem, Alien, Predador, Francisco I, Ferdinand de Saussure, Roland Barthes, Maurice Scève, Clément Marot, Donald Trump, Baudelaire, André Breton, Esmeralda, Honoré de Balzac, Robin dos Bosques, Lev Tolstoi, Hitler, Super-Homem, Clark Kent , Papa, Dalai Lama, Jesus Cristo, Frédéric Lordon, Espino

Humanos

Nós vimos aquele imenso clarão azul no céu. Estávamos a chegar a casa, no sábado à noite, vindos da Baixa. E, de repente, aquela coisa. Aquela coisa a acontecer. Aquele espantoso clarão azul por cima das nuvens. Só na manhã seguinte, soubemos pelo jornal que se tratara de um meteoro. A ciência deu uma explicação, mas durante uma noite fomos verdadeiramente humanos: não tínhamos uma solução para o mistério.

Um passeio na floresta

[Uma das razões para gostar tanto de Eu sou uma rapariga sem história , é o seu carácter multidirecional, quer dizer, é um livro inteligente mas também interventivo (muito) e brincalhão (muitíssimo) que não se deixa agarrar facilmente. Por exemplo, queremos guardá-lo na secção de ensaios de teoria literária onde, tirando a aranha que faz a sua teia, não se passa quase nada, mas volvidas umas páginas, já ele se pirou e temos de correr para o agarrar e já estão —  Alice Zeniter e as numerosas personagens que a acompanham nesta excursão — no palco ou na floresta. Et la voilà, la forêt :] Quando avanço entre os arbustos carregados de bagas, os troncos brilhantes de chuva, volto a pensar nas narrativas de colheita e na ficção-cesta de que Ursula Le Guin falava. Quase tenho a sensação de poder escutar os seus passos atrás dos meus nas pequenas veredas que descem em direcção ao mar. Faz-me bem que ela ali esteja. Porque já não posso com narrativas de caçadores, narrativas de homens notáveis q

Uma imagem de possibilidade

Os miúdos que ocuparam o jardim da Faculdade de Ciências do Porto, montaram as tendas junto ao sobreiro e à faia-pendula . Ou deram conta que as diferenças e a proximidade das duas árvores têm a ver com a sua luta ou foi um belo golpe do acaso.

Raiva fria

5. Portanto, saímos à rua, nós, que podemos sair à rua sem sermos mortos ou espancados. E no fim do dia, quando chegar a hora de voltarmos para casa, nós, que temos casas para onde voltar: vamos poder dizer (a nós mesmos) que fizemos o quê? Talvez seja bom pegar (outra vez) no livro que Geoffroy de Lagasnerie escreveu em 2020 e que a BCF editou em Portugal logo no ano seguinte. Ele chama-lhe um ensaio de estratégia política , que é como quem diz uma raiva fria ou um fogo na mira dos olhos: um plano de como havemos de sair da nossa impotência política. Para ele, a esquerda joga para perder por pouco. A questão não é se estamos a fazer o suficiente na nossa luta: mas, sim, se estamos, de facto, a lutar. «Devemos perguntar-nos se aquilo a que chamamos os nossos “modos de acção”» (leia-se: o dicionário dos nossos gestos políticos) «não (...) são, na verdade, maneiras de fracassar. No exacto momento em que agimos, perdemos. Quando queremos agir, dizemos: vamos organizar uma concentração, pu

Uma vida boa (tão longe)

A FICÇÃO COMO CESTA: UMA TEORIA e outros textos, de Ursula K. Le Guin. Tradução de Sofia Gonçalves. Dois Dias edições.

Labirinto da liberdade

Leio no jornal que um grupo de quatro mulheres dirigiu insultos xenófobos aos organizadores e participantes de uma exposição sobre a Ucrânia, intitulada Labirinto da Liberdade , junto à Estação de Metro da Trindade, no Porto. As mulheres gritaram , entre outras infâmias, «Não queremos cá os imigrantes», «Estão na minha terra» e «Faço o que quero». Isto aconteceu ontem. Dois dias antes, um outro grupo de extrema-direita expulsou da Casa do Tempo, em Cabeceiras de Basto, dezenas de pessoas que participavam numa sessão pública de esclarecimento sobre igualdade de género e orientação sexual. Segundo o jornal , um dos insultos que os militantes de extrema-direita dirigiram às mulheres foi «ide para casa fazer sopa».

Influenciadores do século XX

Introducing Myself

A mulher e o seu saco

«Uma das características das mulheres é andarem sempre com sacos. Cada saco corresponde a um nível de acção específico. Na bolsa, trazem os documentos, o telemóvel quando não está nas mãos, lenços de papel, um livro, chocolates, ganchos, elásticos, uma chupeta, e mais alguns objectos estranhos. A mochila é para transportar o computador portátil. Um saco grande desportivo para as idas aos ginásios. A bolsa térmica com o almoço. Sacos com coisas que vão comprando de manhã e à hora do almoço para levar para casa ou para as casas das senhoras doutoras onde trabalham.» Há um ano, quando escrevi estas notas, achava que os sacos mostravam a posição social (quanto maiores, quantos mais sacos, menos dinheiro?) — um pouco à semelhança da roupa.  Depois de ler o texto de Ursula K. Le Guin , percebi que os sacos tem outro poder: contam histórias. Histórias que ninguém escreve.