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Mensagens

Da necessidade de ler jornais

Em Les Signes Parmi Nous , Godard diz que se filmarmos um engarrafamento nas ruas de Paris e se o soubermos ver – claramente ver o lume vivo — descobrimos uma vacina para a SIDA. Os jornais são um registo desse engarrafamento. Apesar das pressões políticas e económicas a que os jornalistas estão sujeitos, oferecem-nos a mesma matéria fotográfica em diferido. Se conseguirmos devolver-lhe o movimento ( montage, mon beau souci ), um dia havemos de descobrir as vacinas.

Dos jornais XXXV

Favaios, 25 de Agosto. Mesmo à borda da estrada, quatro trabalhadores indianos estenderam uma toalha no chão, cada um colocou a sua comida, sentaram-se de pernas cruzadas e almoçaram à sua moda, em conjunto e com as mãos. Ao lado, os trabalhadores portugueses comeram da sua marmita, em separado, uns sentados no muro da vinha, outros no chão. Quem passasse, veria ali naquele descanso de vindima duas culturas bem distintas. Eu vi o mesmo, mas o que me pareceu “diferente” e até triste foi o modo de comer dos portugueses, cada um para seu lado. O modo indiano tinha mais familiaridade: uma toalha estendida no chão com a merenda para ser partilhada era a mesa de antigamente no campo português. (...)

Dos jornais XXXIV

O escândalo em Serralves não é nada que não se adivinhasse. A novidade é estar nas primeiras páginas do jornal com chamada na capa. As perguntas são cortantes e a jornalista Mariana Duarte tem a coragem de usar a palavra «capatazes» (com enorme serventia, diga-se). Quanto à entrevistada, a cena do sunset é boa pela caricatura; já o facto da candidata a directora-geral ter uma conversa prévia com a Ana Pinho mostra que Serralves não passa de uma coutada dos burgueses ricos da Foz.  Entretanto o cerco de protecção já foi montado : a celeuma à volta da saída da Isabel Pires de Lima vai passar rapidamente; tudo voltará à paz podre. 

Dos jornais XXXIII

“Esta ilha é o paraíso, é o lugar mais bonito que já vi na minha vida”, diz à Reuters Jeronimo Diana, canalizador de origem argentina, de 50 anos, que trabalha em Ibiza, a ilha espanhola conhecida como a “ilha da festa”. “Mas há um lado sombrio”, adverte. “Eu tenho um contrato de trabalho sem termo, ganho 1800 euros por mês, mas não ganho o suficiente para pagar a renda de uma casa.”  A conversa entre Jeronimo e a agência Reuters decorre num aldeamento improvisado onde cerca de 200 pessoas, quase todas trabalhadoras do sector do turismo, vivem no interior de barracas, tendas de campismo, carros, caravanas ou autocaravanas. “Can Rovi 2”, o nome pelo qual o “bairro” era conhecido na ilha, foi desmantelado pelas autoridades em Julho, obrigando os residentes a procurar novas soluções de habitação. Há, de acordo com as autoridades, cerca de mil pessoas a viver nestas condições, em Ibiza – uma realidade distante e, ao mesmo tempo, tão próxima dos mais de 4 milhões de turistas que visitam...

O romancista e os seus amantes

Há algo paradoxal nas relações entre um romancista e os seus amantes. Enquanto escritor, sabe que a sua história tem de acabar e quer que ela acabe. Também nós, enquanto leitores, sabemos que o romance tem de acabar e queremos que acabe. «Mas ainda não!», dizem os leitores ao escritor. «Mas ainda não!», diz o escritor ao seu herói e à sua heroína. «Mas ainda não!», diz quem é amado a quem ama. E assim o alcance do desejo continua. Anne Carson, Eros. Amargo e Doce . Tradução de Tatiana Faia.

Literatura desviante

Da página 10 à 18 de O Salteador , de Robert Walser, encontramos as seguintes referências gastronómicas: umas costeletas das mais suculentas; ao almoço, costumava haver esparguete; uma sanduíche de presunto; uma fatia de tarde de queijo acompanhada de um café; frango e salada; um belo assado; pequenas tabletes de chocolate; pauzinhos de chocolate. É uma por página. Dá para perceber logo que se trata de um romance desviante.

Dos jornais XXXII (limões e hortaliças)

«As bancas de legumes e hortaliças das Irmãs Araújo e dos Legumes da Tininha já foram abandonadas, sem que houvesse qualquer intervenção por parte da gestão para a preservação da atividade e passagem do testemunho intergeracional», acrescenta a comerciante. «Um dia destes acordamos e os legumes são apenas ali ao lado, no Continente». À hora do almoço, o Bolhão parece uma praça de alimentação cheia de turistas esfomeados. Tantas regras para os limões ... e depois descamba nisto. Mais valia o rés-do-chão em Fernandes Tomás.

Livros

No quadro, Madame Ginoux está sentada a uma mesa de café. Sobre a mesa, três livros, um deles aberto. Van Gogh pintou-a no momento em que ela levanta os olhos do livro e fixa a atenção em qualquer coisa que está «fora de campo». Robert Walser escreveu sobre este quadro. Um texto de três páginas onde fantasia sobre tudo, excepto os livros. É como se não fizessem parte da imagem.

«Nos filmes que vi, aparecia frequentemente uma criança como personagem principal. »

Já tenho uma lista de alguns filmes que Robert Walser viu e outra de filmes baseados em textos seus. Agora estou a fazer uma muito mais divertida: filmes que talvez agradassem a Walser. The Kid (1921), de Charles Chaplin. The Three Musketeers (1921), de Fred Niblo. Dr. Mabuse, der Spieler (1922), de Fritz Lang. The General (1926), de Buster Keaton. Birds of paradise (1932), King Vidor. La Nuit du Carrefour (1932), de Jean Renoir.  Me and my gal (1932), de Raoul Walsh. Vampyr (1932), de Carl Dreyer. Zéro de Conduite (1933), de Jean Vigo.  I Walked with a Zombie (1943), de Jacques Tourneur. Mr. Verdoux (1947), de Charles Chaplin. The Strange woman (1947), de Edgar G. Ulmer. Peccato che sia una canaglia (1955), de Alessandro Blasseti.  The Night of the Hunter (1955), de Charles Laughton. Judex (1963), de Georges Franju. Cours du Soir (1967), de Nicolas Ribowski. Цвет граната (1969), de Sergei Parajanov. Peau d'Âne (1970), de Jacques Demi.  Quatre Nuits d'un Rêveur (1971...

Temos aqui uma situação

 « (...) Quanto a mim, já me diverti bastante com encenações e representações de terceira categoria. As coisas mais refinadas nem sempre são as mais digeríveis...» Caminhadas com Robert Walser, de Carl Seelig. Tradução de Bernardo Ferro. BCF editores. Abril de 2019.

A maçã voa enquanto permanece parada

Carson nota um verso no qual uma maçã está suspensa na árvore; o verbo para a “suspensão” é epeteto , que vem de petomai , o verbo “voar”. Geralmente é usado “para criaturas com asas ou para emoções que atravessam o coração”, ligado à “emoção erótica”, usado por Safo no fragmento 31 para dizer que eros “dá asas ao meu coração” ou “faz meu coração voar”. No trecho analisado por Carson – do romancista Longo, autor de Dáfnis e Cloé , do século II d.C. –, o verbo está no imperfeito, ou seja, “paralisa a ação do verbo no tempo”, já que o imperfeito expressa continuidade, “para que, como a flecha no paradoxo de Zenão, a maçã voe enquanto permanece parada”.

Estrada nacional (3)

Monsaraz. Devem estar uns 43 ou 44 graus. Na praia fluvial, não há um metro quadrado de albufeira livre. A esplanada “Sem Fim - Restaurante e Barcos” está a abarrotar. Sandes, bifanas, petiscos. As colunas de som lançam sobre a multidão clássicos do reggae como aspersores de água fresca. De repente, o Alqueva é a nossa Jamaica possível.

Pífaro

O texto de Eurico de Barros sobre  As Aventuras de uma Viajante pela Coreia do Sul  (que título tão mal traduzido) tem um bónus. Para além de atacar  (com extrema firmeza) o filme, o realizador e até quem gosta deste cinema preguiçoso e gasoso  – ah, esta é para mim! –, o crítico escondeu a palavra pífaro no segundo parágrafo. Pelo divertimento que a sua verve me proporcionou, dou-lhe a honra do título. §§§ Devo andar a perder as minhas qualidades, pois confesso que não detectei as tais  preciosas subtilezas emocionais e importantes complexidades psicológicas.  Pelo contrário, o filme de Hong Sang-soo  – verde, cómico e triste – pareceu-me mais uma perspectiva do Monte Fuji. E Iris é, sem dúvida, uma reencarnação feminina e orientalizada de Boudu.

Série C

Deve ser uma desforra. Bastou-me formular o pensamento da impossibilidade de adaptar os textos de Walser ao cinema, para não me faltarem ideias divertidas  para filmezinhos walserianos.