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Mensagens

A mostrar mensagens de agosto, 2019
Encontrei um mosquito espalmado e seco na página 75 de “Uma gata, um homem e duas mulheres". Não sei se devo classificar isto como dano físico ao livro ou elogio a Junichirō Tanizaki.

Instrumentos relacionados

No Bonfim um quilo de tomate coração de boi ronda um euro e pouco; no Bolhão, um e meio; em Miguel Bombarda, dois e meio; na padaria que abastece as sandes da Badalhoca (Ramalde), quatro euros. Em certo sentido sou parecida com os tipos que sabem as cotações da bolsa.

Observações avulsas sobre a boavista #8

Linha de montagem

Quis filmar uma cena longa de um diálogo entre Cary Grant e um dos trabalhadores [de uma fábrica de automóveis da Ford] diante da linha de montagem. Por detrás deles, o carro começa a ser montado, peça por peça, até ficar pronto, com o nível do óleo controlado e o depósito de gasolina atestado; no final do diálogo, olham para o carro completamente construído a partir do nada e dizem "Isto é uma coisa formidável." Depois, abrem a porta do carro e cai um cadáver de lá de dentro. Hitchcock, Diálogo com Truffaut . Tradução de Regina Louro.

Mestre delirante de Guimarães

S. Jerónimo, pormenor da obra «Virgem do Leite entre S. Bento e S. Jerónimo», atribuída ao Mestre Delirante de Guimarães, séc. XVI (1510-1530).

Inauguração d’Ulisses

A senhora estava muito entusiasmada porque o “Ulisses” era novo. Disse qualquer coisa do género “que bom, vou inaugurar o livro”. Decorei o verbo porque achei um bocado estranho usá-lo em relação a um livro, mesmo tratando-se de um livro de biblioteca. Se os outros dois que requisitou também eram para ela, desconfio que a inauguração vai ser uma grande festa.

A Fonte da Baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven

Baronesa Elsa (...) tinha o hábito de coletar objetos encontrados e dar títulos que alteravam seu sentido.

Observações avulsas sobre a boavista #7

Assuntos dos jornais

Os tribunais a meterem água e Rui Rio de cócoras são simultaneamente factos e figuras de estilo. Para a linguística esta concordância de sentidos é muito divertida, mas parece-me mau presságio para aquilo que vamos ter de aguentar: um mundo demasiado retórico, demasiado afectado.

Trocos

Escrever todos os dias. Nem que seja uma frase. Quatro ou cinco palavras, segundo uma determinada ordem. Dia após dia. Como aqueles tipos que, todas as manhãs, e sem grande esperança, percorrem os parquímetros do bairro à procura da moeda esquecida na caixinha dos trocos.

Deixar-se cair

O mais conhecido é o motivo a que Freud chamou Niederkommenlassen , "deixar[-se] cair", com todas as suas conotações de queda suicidária melancólica - uma pessoa que se agarra desesperadamente à mão de outra. Slavoj Žižek,  Lacrimae Rerum . Tradução de Luís Leitão. Manoel de Oliveira, A Caça , 1964.

Casa & Jardim

Varanda pequena, virada ao sul. As plantas demoram a adaptar-se ao calor excessivo. Já apareceram ervas daninhas — é bom sinal. Num dos vasos cresceu um caule tenro com ramificações; dá-me pelo ombro. A minha ambição é desmedida: um matagal.

Discussão sobre as coisas altas

Talvez por causa do tempo contra a estação; por me ter afastado pouco de casa; por conseguir finalmente estar-me nas tintas para tantas coisas diversas. Por tudo isto, as férias de agosto não pareceram férias. Foi uma sensação melhor, como se já estivesse desempregada (de longa duração), disponível apenas para rotinas básicas, a dar o mínimo da minha vida .
“uma força da natureza, do passado e do presente e também do nosso futuro” Nas fotografias divulgadas pelo Festival de Locarno , Pedro Costa e Vitalina Varela simbolizam mais os leopardos do que as estatuetas.

A greve continua

Esta greve dos motoristas é um dos acontecimentos políticos mais interessantes dos últimos tempos. Se avançarmos para além das questões básicas que excitam os jornalistas, deparamos com uma paisagem complexa* que merece atenção e análises em várias frentes. Mas o facto que me perturba mais talvez seja como, sobranceiros a todos os discursos**, os eternos valores da honra e vergonha traçam o nosso destino. * O desconhecimento generalizado (envolve políticos, comentadores, historiadores, isto é, gente que vive numa situação económica paralela) dos ordenados pouco acima dos valores mínimos instituídos e das condições de trabalho degradadas da maioria dos trabalhadores; a iliteracia financeira que impede a leitura correcta de um recibo de vencimento e dos esquemas que esconde; a manha das pequenas e médias empresas que disfarçam uma gestão vaidosa e mal feita, sempre no fio da navalha, assente em salários baixos e sem perspectivas de crescimento, assumindo tantas vezes o velho papel ...

Ainda mais pobre

A pergunta do porquê de Beckett escrever em francês desde 1945 foi-lhe feita tantas vezes que já se reuniu toda uma série de respostas. A mais antiga, de 1948, foi expressa num francês coloquial: Para me fazer notado . A seguinte data de 1956: Tinha simplesmente prazer nisso... Para mim tornava-se muito mais excitante . No mesmo ano: Para escrever sem estilo. E em 1968: Para me tornar ainda mais pobre. Foi essa a verdadeira motivação. Klaus Birkenhauer, Beckett . Tradução de Maria Emília Ferros Moura. A verdade é que Beckett começou a escrever em francês antes de 1945.

Mais vergas do que gozo

Foi precisamente em Londres que Belacqua de Beckett assumiu a sua forma definitiva: a partir do fragmento do romance Dream of Fair to Middling Women , utilizado como "primeira pedra", Beckett elaborou uma colectânea de dez contos com o título de More Pricks Than Kicks . Esta formulação constitui um choque para qualquer cidadão de língua inglesa (...). Pode ainda assim tratar-se de uma brincadeira bíblica sobre a frase da Bíblia to kick against the pricks ("levantar protestos"); ou ainda uma brincadeira com a expressão more kicks than halfpenc e ("mais queixas do que agradecimentos"). No entanto, os dois possíveis significados secundários apagam-se ante o principal significado actual destas palavras; prick quer dizer, na verdade, espinho ou aguilhão, mas na linguagem coloquial, sobretudo, pénis; e kick não significa apenas queixas, mas também uma alegre excitação, bem-estar. Sem o significado secundário inglês inofensivo, o título seria algo de tão ordin...

Ka

Ninguém escapa. Na contracapa de “Um repentino pensamento libertador”, duas referências: “por muitos considerado o Raymond Carver europeu” e “o humor seco e absurdo de Askildsen não é muito diferente do de Beckett”. (Desconfio que isto acontece com mais frequência nos livros de contos.) Como se os críticos precisassem — antes de qualquer pensamento — de arranjar um lugar para cada escritor numa tabela periódica. Todos ordenados de acordo com os números atómicos, configuração electrónica e recorrência das propriedades. — E isso basta? — Para a Amazon vender, sim.
O tipo de poemas que escrevo — na maioria curtos e a precisar de ajustes sem fim — lembram-me muitas vezes partidas de xadrez. Para resultarem dependem da colocação das palavras e imagens na ordem correcta e os versos finais devem ter a inevitabilidade e surpresa de um xeque-mate executado com elegância. Charles Simic

Outdoors

“Faz acontecer” é a frase do novo outdoor do Bloco de Esquerda. O CDS parece um sistema avariado (“a preparar o futuro” sobre fundo azul). Diga o que disser, o PSD não consegue comunicar — afasia em fase crónica. O PS capitaliza números. A Iniciativa Liberal diverte-se com trocadilhos e outras graçolas. (...) Sem coragem para uma linguagem política directa, os partidos enredam-se nas armadilhas do discurso publicitário. Querem vender; eu não quero comprar. Quando é que isto acaba?

Cartas de amor

A fotografia estava entre as páginas de um livro que comprei na Vandoma. Uma edição brasileira de «Contos Soviéticos» , de 1944 (Empresa Gráfica «O Cruzeiro», Rio de Janeiro). Não tem nenhuma informação na frente ou no verso, mas foi tirada em Portugal, certamente entre os anos 70 e 80. O livro também não está assinado. O edifício que enquadra a imagem parece ser uma fábrica. Quem são estes personagens? Operários da fábrica? Administrativos? Membros da direcção? Porque decidiram eles fazer as fotografias do casamento (presumo que após a cerimónia religiosa) no cenário cinzento da fábrica e não, como se fazia na época, na praia ou num jardim? Que idade teriam eles? Vinte e poucos? Trinta? Hoje terão sessenta, setenta. Estarão vivos? Tiveram filhos? Para onde corriam? Ou de que passado escapavam eles? O corpo do homem parece querer levantar voo e levar a rapariga com ele. O livro inclui uma história de Nadejda Aleksandrovna Lokhvitskaya, escritora muito pouco «soviética», que se exilou...

No peito dos desafinados

A certa altura, Stefan Zweig diz que E.T.A. Hoffmann lhe lembra um instrumento musical partido. Quer dizer, quando Hoffmann tenta uma nota alegre o que lhe sai é uma nota triste. Quando procura uma melodia serena sai-lhe uma variação assustadora. «Com efeito, E.T.A. Hoffmann foi sempre um instrumento com uma pequena fenda.» O mestre alemão seria, pois, uma espécie de escritor com defeito. Não um defeito técnico, como acontece numa máquina — um cortador de relva que não funciona correctamente, por exemplo —, mas um defeito humano, criador de arte. Seja como for, um instrumento musical capaz de criar uma música estranha e desafinadamente bela. Não há melhor elogio que se possa fazer a um escritor.

Goodwill

— Ah, finalmente um gráfico com valores interessantes.

Influenciadores do século XX

Outros gastos e perdas

A linguagem dos Relatórios e Contas é muito próxima de uma certa poesia de origem anglo-saxónica e pendor lacónico. Em cada tabela encontro títulos/versos formidáveis. Que entusiasmo! Infelizmente, os contabilistas não se apercebem de como isto podia acrescentar textura à sua vida amorosa.