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A mostrar mensagens de novembro, 2019

Pergunta

Mas, sobretudo, permite explicar um fenómeno sobre o qual, penso, os estudantes de arquitectura jamais deveriam deixar de reflectir: o facto de que, como vocês sabem, o campo de Auschwitz ter sido projectado e construído por um arquitecto, Fritz Erl, que tinha estudado na Bauhaus. Por conta de uma venturosa – ou, talvez, desventurada – circunstância, o projecto do campo, que também fora firmado por outro arquitecto, Walter Dejaco, conservou-se. Em 1972, os dois arquitectos foram processados em Viena e absolvidos. Mas a pergunta que surge aqui é: como é possível que arquitectos, cuja seriedade é indubitável, tenham podido projectar um edifício onde de forma alguma teria sido possível sentir-se em casa, isto é, habitar? O que pode ser uma arquitectura que se funda sobre a impossibilidade da habitação? Giorgio Agamben.

A essência das coisas

Eu sempre disse — ao responder à questão de Ravelstein, "Como imaginas que será a morte?" — "As imagens cessarão". Querendo com isto dizer, uma vez mais, que na superfície das coisas víamos a essência das coisas. Ravelstein, de Saul Bellow. Quetzal Editores.

Gruas

Para onde quer que se olhe, há gruas a disparar em todas as direcções sobre a cidade. Fortalezas voadoras a competir com pardais e gaivotas pelo domínio do espaço aéreo. No chão, os manobradores parecem miúdos com joysticks  a olhar para o céu. Heróis de um jogo de guerra, prontos a conquistar mais um metro quadrado de terra, casa após casa, rua após rua, bairro após bairro, um dia após o outro.

É dia

(Três semanas depois) As fotografias que acompanham o texto da Joana Gorjão Henriques no ípsilon foram muito bem escolhidas. Richard Dumas apanhou Pedro Costa a uma certa distância, de corpo inteiro, quase de perfil, entre uma porta e uma janela. Parece uma fotografia de trabalho — não, é mais do que isso, é um documento como os retratos de August Sander (um novo sentido para Die letzten Menschen ). Para além da fotografia antiga que aparece no filme (dezassete anos, vestida de noiva, sozinha porque casou por procuração, com os olhos quase cerrados), Vitalina surge duas vezes. A primeira fotografia foi tirada por Pedro Costa e ocupa cinco colunas. Há mais luz, mas a forma de enquadrar é semelhante à do filme. Vitalina encosta a cabeça a uma portada; o olhar dela é muito ambíguo, continua preso não se sabe a quê (é sobre isto que não sabemos que Pedro Costa constrói os filmes) — a imagem tem qualquer coisa de naufrágio. Na página sete, na fotografia a preto e branco de Marta M

Porta

Exactamente a meio do quadro, Nikias Skapinakis desenhou uma abertura. É o único ponto de fuga numa paisagem desolada, dura, intransponível. Parece a entrada de uma caverna, feita de uma matéria estranha à matéria mineral que domina o quadro. Qualquer coisa viva, orgânica, carnal. O que há para lá daquela «porta»? Um muro ou uma solução?

Filmes

Destino engraçado, o dos filmes. Não ficam na estante, como os livros; nem na parede, como os quadros; nem nos discos, como a música. Ficam na lembrança, apenas. Será por isso, talvez, que nos deixam, alguns, tanta saudade. É que marcam melhor certas fases da vida, certos sentimentos, certas lutas; e se os revemos assim, no muro de um cineminha de subúrbio, eles nos são restituídos de um modo particularmente intenso. Deu-se tantas vezes isso comigo. Nunca me pude esquecer de um cartaz velho da Dama das camélias , visto, uma madrugada, numa cidadezinha de Minas. Eu estava no trem e não foi senão um momento. Mas deu para me emocionar o resto da viagem e me perturbar umas férias inteiras, lembrando coisas boas...  Vinicius de Moraes, Cinema .

Influenciadores do século XX

Modern love

Hoje, a caminho da estação do Marquês, vi um tipo que podia ser o irmão gémeo de Denis Lavant. Seguia do outro lado da rua, a fumar. Fiquei à espera que desatasse a correr e a esmurrar o coração, e que o David Bowie descesse das nuvens. Não aconteceu.

Selfie

In “Art and Morality,” an essay from 1925, D. H. Lawrence essentially predicts the selfie. Speaking of the new Kodak cameras, he writes: “To every man, to every woman, the universe is just a setting to the absolute little picture of himself, herself.” Dwight Garner.

Influenciadores do século XX

Na incerteza

Conta Antonio Candido, que em seu encontro com João Guimarães Rosa à beira-mar, quando passeavam em Porto Fino-Ligúria, tentou introduzir o tema da política, declarando-se socialista. Rosa ponderou a questão, emitiu opinião, mas ao fim e ao cabo disse logo o que lhe importava: “a única questão fundamental do homem”, declarou, “é saber se Deus existe ou não”. Na incerteza, escreveu histórias. Alessandra Parente.

Hora certa

Na fila do supermercado, reparo num homem que tem um relógio tatuado no pulso. Creio que não me engano: os ponteiros marcam as doze horas certas. Meio-dia ou meia-noite? Uma hora marcada para sempre na pele. A hora de um encontro marcado ou apenas desejado? Com quê? Com quem?

Não te queixes

No metro, duas mulheres conversam sobre coisas mais ou menos triviais. A certa altura, a minha atenção emaranha-se no fio da conversa. Comentam os pormenores de uma qualquer aventura amorosa entre dois personagens que ambas conhecem. Fico interessado: — Eu avisei-o: se gostas dela vai à tua vida. — Pois, fez muito bem… — Mas depois não te queixes, disse-lhe eu. Podes voltar para casa, mas não te queixes. Mantive os olhos fixos no livro para parecer distraído. A conversa avançou com mais um ou outro pormenor sobre o caso. Percebi que falavam de um gato doméstico já perto da minha paragem.

Excesso de arte

Este grande homem seria o espanto de todas as nações se tivesse um estilo mais agradável, se não estragasse as suas composições com coisas bombásticas, grandiloquentes e intricadas, e se o excesso de arte não escondesse a beleza. Adolf Scheibe a propósito de Johann Sebastian Bach.

Final aberto

A confeitaria ao lado de minha casa onde compro pão todas as manhãs, fechou. É uma daquelas confeitarias que estão abertas aos domingos e feriados, incluindo os dias de Natal e Ano Novo. É a primeira vez, em dez anos, que vejo aquela porta fechada à luz do dia. Não há um aviso, uma explicação. O que terá acontecido? Parece um filme com final aberto. Talvez um Kiarostami.

Influenciadores do século XX

Outro tempo

Os dias estão mais curtos e a temperatura desceu. Mas ainda há pequenos insectos de outro tempo dentro de casa: melgas, mosquitos, borboletas minúsculas. Parecem anestesiados pelo frio. Colados às paredes, muito lentos, à espera de um qualquer milagre que nunca virá. São fáceis de apanhar.

Não é poesia

“Quando os índios falam que a Terra é nossa mãe, dizem ‘Eles são tão poéticos, que imagem mais bonita’. Isso não é poesia, é a nossa vida. Estamos colados no corpo da Terra. Somos terminal nervoso dela. Quando alguém fura, machuca ou arranha a Terra, desorganiza o nosso mundo.” Ailton Krenak.

Grande herbário de sombras

Os passeios e as ruas andam cobertos de folhas caídas e encharcadas. Quando os varredores vêm e recolhem as que o vento ainda não arrastou para longe, ficam as suas cópias: imagens impressas no chão através de uma delicada tinta castanha, que persiste bem visível durante algum tempo. São os fantasmas do Outono passado. O grande herbário de sombras das cidades.

Aura

De vez em quando, sou atacado por um tipo de enxaqueca menos comum chamada «enxaqueca com aura». No meu caso, o problema manifesta-se através de alterações da visão. Durante o tempo que dura a enxaqueca — nunca mais de uma hora —, tudo à minha volta parece terrivelmente brilhante, com as cores muito vívidas e nítidas. A um ponto que se torna insuportável. Ninguém consegue ver o mundo com tanta nitidez. Quando a aura se revela, convém tomar rapidamente uma aspirina.

Chuva

Uma semana inteira de chuva miudinha, pesada e muda. Os dias parecem não ter fim. As nuvens cobrem as casas como mãos enormes, lentas, ameaçadoras. A cidade parece mergulhada no fundo de um abismo, com a vida, a verdadeira vida, a correr muito acima.

Tem outro nome

A influência de Ozu nos filmes de Pedro Costa não é só cinematográfica. Há o plano da chuva a cair nas telhas (Griffith  remix ). Os objectos vulgares filmados com a gravidade do ouro, incenso e mirra. As relações entre pais e filhos, reais ou inventadas. O modo como os corpos se movimentam nos quartos. Todas essas disposições unem os dois cineastas desde Vanda. Com o tempo, porém, apercebo-me que a ligação a Ozu é mais íntima, é antes do que se vê (também no cinema, nem tudo passa pelos olhos). Está relacionada, talvez, com o hábito japonês de descalçar os sapatos à porta? Não é só Vitalina descendo as escadas do avião com os pés nus, não é só neste filme. À semelhança das personagens discretas de Ozu, Pedro Costa entra sempre descalço na casa de cada um. Isso não se aprende numa escola de cinema, nem sequer no confronto com a matéria cinematográfica. Tem outro nome.