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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2021

Nortada

O Governo decretou a «libertação total do país», a partir de 1 de Agosto. Os jornais falam em «caminho da libertação», «plano de libertação», «libertação da sociedade e da economia». Com um pouco de imaginação, até conseguimos ouvir os ventos da Normandia a soprar nas praias da Foz.

Observações avulsas sobre o bonfim #31

 

Julho

Do outro lado da janela, o mar interminável de telhados. Gaivotas e bandeiras azuis nos estendais. Aviões e guindastes, papagaios de papel. O contínuo marulhar dos pneus na rua. Deste lado da janela, «nadar, nadar, nadar, para não morrer afogado.»

Onde fica o caminho?

Uma folha branca está cheia de caminhos. Já se sabe, será preciso ir da esquerda para a direita. Já se sabe, vai ser preciso andar muito, penar muito. E sempre da esquerda para a direita. Também se sabe - às vezes - previamente: quando a página estiver escurecida pelos signos, será preciso rasgá-la. Será preciso refazer o mesmo caminho dez vezes, cem vezes; o caminho do nariz, da nuca, da boca; o caminho da fronte e da alma. E todos esses caminhos têm os seus próprios caminhos. - Caso contrário, não seriam caminhos. Edmond Jabès, O Livro das Questões . Tradução de Pedro Eiras.

Oh, estou tão contente com as botas.

Julian e Bradley já começaram a falar de Hamlet, mas não tenho coragem de interromper a leitura d’ O Príncipe Negro e passar a Shakespeare para um exercício diletante de montagem paralela; é difícil resistir à escrita sedutora de Iris Murdoch (e à tradução exemplar de José Miguel Silva). Para mais, acabei de chegar à cena das botas roxas. Se fosse eu a decidir, era as botas que punha na capa — segundo o meu critério sofisticado , só faltava isto para considerar Murdoch uma verdadeira filósofa.

Estar com a mosca

Fui vaguear para as ruas dos duques. Ao passar à porta do café Asa de Mosca, lembrei-me da pretensão recente de traduzir  avoir le cafard por estar com a mosca; não deu em nada porque a expressão já está tomada. É pena. Mesmo assim, se tivesse de me encontrar com Cioran aqui no Porto, era no Asa de Mosca. Depois podíamos ir ao Prado do Repouso — ele era capaz de apreciar o nome e ainda alguns arroubos arquitectónicos que por lá se vêem. Quando saí do cemitério comprei vinho (os tais de altitude ) e flores.

Sala de espera

Segunda dose da vacina. Enquanto aguardo a minha vez, ocorre-me que a sala de espera é uma metáfora possível destes quinze ou dezasseis meses (já perdi a conta) de pandemia. O nosso pequeno mundo — a casa, as ruas, a cidade — converteu-se numa sala de espera. Mas temos estado verdadeiramente à espera de quê? O que há do outro lado da porta? Queremos mesmo saber?

Jejum intermitente

Depois d’ A Cabeça Decepada , comecei logo a ler O Príncipe Negro . Mas o excesso de Iris Murdoch pode causar danos (já tinha sido avisada), por isso pousei o livro e fui pesquisar capas , para desanuviar: além das banais, a da Warner é horrível e cómica; a da Lumen é um bocado pretensiosa (não só esta, mas todas as que têm rostos de mulheres ), pelo contrário, uma versão antiga da Penguin com a rapariga azul e o selo vermelho é perturbadora e só por isso ganha uns pontos; a chinesa e a da Vintage Classics são bonitas (a chinesa também é delicada); nenhuma tem a Post Office Tower (quando os desenhadores gráficos não lêem os livros na íntegra, passam ao lado das potencialidades freudianas).  Entretanto o carteiro trouxe o outro príncipe, Hamlet — ficam os dois juntos e em repouso mais um tempo a ver o que acontece. Street level view of the newly completed Post Office Tower, July 1965 (CM 22/195)

Quando for mais velha

No jornal de domingo, o antropólogo James Suzman explica que não existe nenhuma sustentação antropológica para a nossa obsessão com o trabalho duro. O trabalho árduo não compensa em termos económicos e não nos torna mais felizes: «Não é por teres dois empregos que vais realizar os teus sonhos. Esta ideia do sonho americano, de que qualquer um, desde que trabalhe arduamente, pode ser o que quiser, é pura falácia.» No dia anterior, sábado, o mesmo jornal publicava uma reportagem sobre três jovens «viciados no trabalho»: «Carina trabalha entre 80 e 84 horas por semana, Miguel sai de casa às 6h30 e só regressa à meia-noite e Frederico embarcou numa viagem transformativa para se redimir do vício no trabalho. Têm todos menos de 30 anos e respiram trabalho. Fazem-no por paixão e auto-reconhecimento.» Uma das jovens, Carina Ribeiro, de 26 anos, diz que vai ter tempo para descansar «quando for mais velha».

Um terrível objecto de fascínio

Uma Cabeça Decepada é muito divertido, no sentido mais filosófico de diversão. Há sete personagens fechadas numa teia que vão trocando de posição: ora são moscas, ora são aranhas. Discutem os valores morais e com quem vão para a cama — sempre num inglês extremamente correcto. Convergem e divergem. Bebem muito. Podia ser uma peça de teatro ou até uma ópera. Em vez de batuta, Iris Murdoch usa uma espada de samurai (fica-lhe bem). Também dá para fazer muitos sublinhados; frases que podem ser gravadas na pedra e conceitos para guardar no bolso como o da cabeça decepada e o amor sem trajecto (os dois definidos por Honor Klein — que nome formidável! — na página 198). Foi uma semana de férias maravilhosa.

Metamorfose

Já passa das duas da manhã. Ainda estou a remoer O Signo do Leão , a primeira longa-metragem de Éric Rohmer, que fomos ver ao Campo Alegre. Claro que não é a nódoa de gordura nas calças de Pierre Wesselrin que determina a sua «queda». Mas essa espécie de mancha original, impossível de limpar ou disfarçar, incrusta-se de tal maneira no personagem que, a certa altura, confunde-se com ele. Pierre Wesselrin transforma-se numa mancha indesejável, um ponto sujo na paisagem burguesa de Paris.    

Oh, demon alcohol!

Glasses aparece 25 vezes; bottle , 12; drink , 20; drank , 8; drunk , 14; wine , 12; martini , 4; whisky , 17; champagne , 6; gin , 4; brandy , 2. O teor de Uma Cabeça Decepada é, antes de mais, alcoólico.

Unicórnios

Um dos candidatos à Câmara de Lisboa promete transformar a cidade numa «verdadeira fábrica de unicórnios» . O unicórnio, sabemo-lo pelas Escrituras, foi das poucas criaturas que não entrou na Arca de Noé, não alcançou o Monte Ararat e não escapou ao dilúvio. Deus deve estar furioso.

Social-sanitarismo

Uma conhecida colunista do jornal Observador queixa-se de que vivemos sob uma espécie de «ditadura social-sanitária»: «Somos as cobaias de uma nova forma de governar: o social-sanitarismo.» Leio isto e ocorre-me, de imediato, a maravilhosa sequência do jantar burguês em O Fantasma da Liberdade . Os comensais instalados em sanitas e satisfazendo livremente as suas necessidades fisiológicas à mesa. Quando têm fome, levantam-se e fecham-se na casa de banho para comer.

Poema do saco cheio

“Rei dos frangos” /  guardava fortuna /  em saco do Pingo Doce. Foi preciso alterar a forma para enfrentar este título (é uma avalanche de informação; submerge qualquer pensamento, submerge tudo). Posto em três linhas, até parece um poema da Adília Lopes. Pelo menos já posso rir.

O coração contrai-se

Qualquer trabalho usa o instrumento, polir lentes estraga os olhos, extrair carvão, os pulmões, etc. E quando nos dedicamos à literatura o coração contrai-se. Uma coisa vale a outra. Será preciso embalsamar as nossas forças para as enterrar vivas connosco? De modo nenhum. Nós devemos servir-nos delas. Uma vez mortas, cumpriram o seu dever. "A vida não vale nada se a estimarmos." Ela já está morta se não estivermos sempre dispostos a sacrificá-la. Heinrich von Kleist, carta de 20 de Julho de 1805, dirigida a Maria von Kleist (sua prima). Citada por Maria Filomena Molder, na folha de sala de O Duelo .

Springlabyrinth

Tento acompanhar, através dos jornais, os detalhes do processo jurídico que envolve mais um «grande empresário» português. Faço um esforço para seguir as linhas com que se cose a corrupção ao mais alto nível, mas a minha atenção fica presa a um pormenor. Repare-se nos nomes das empresas por onde, neste caso, circulava o dinheiro: Vastos Limites , Springlabyrinth , Capital Criativo , Palpites e Teorias . Por um breve momento, os nomes funcionam como uma espécie de «alívio cómico». Mas só por um breve momento.

Dada vive

Leio no jornal que o empresário Pedro Pinto, dono da Livraria Lello, tem uma nova ideia de negócio para o Porto: criar o «Bairro Dada», na Rua do Loureiro. Releio o texto para ter a certeza de que não me enganei. «Numa homenagem ao dadaísmo feita pelo próprio Pedro Pinto, o “Bairro Dada”, cujo nome “já está registado”, será “a nova grande centralidade do turismo na cidade”.» Sinto-me imediatamente inspirado pelo empreendedorismo de Pedro Pinto e ocorre-me também uma nova ideia de negócio: o Bairro das Tripas à Moda do Porto, na Spiegelgasse, em Zurique, com sede no Cabaret Voltaire. Mas, pensando melhor, e agora sem ironia, talvez fosse difícil pensar numa ideia mais dadaísta do que criar o «Bairro Dada» na velha Rua do Loureiro. Dada está vivo.

Astigmatismo

Há meses que tinha a impressão de estar a ver pior. A impressão era mais forte quando lia e, em especial, no olho esquerdo. Marquei uma consulta no oftalmologista. O médico confirmou os meus receios: a lente esquerda dos óculos passou de quatro para cinco dioptrias. O médico disse-me que este agravamento não é comum em pessoas da minha idade com astigmatismo, que é uma doença que tende a estabilizar e não o contrário. Talvez exista uma qualquer lição zen para gente como eu, que vai perdendo lentamente a visão. De tanto se esforçarem por verem as coisas com mais nitidez, vêem cada vez pior. Quer dizer, vêem melhor as sombras das coisas.

Influenciadores do século XX

 
Encontrei a velha de “Há festa na aldeia” na rua de São Roque da Lameira por volta das três horas da tarde. Perdeu a cabra.

Teletrabalho

Investi o dinheiro do passe em dois livros da Iris Murdoch. Escolhi-os pelos títulos e pelos tradutores. Sinto-me como aqueles tipos que sabem ganhar milhões na Bolsa.

Gravura

Dizem que a mula de Guo Lao conseguia viajar centenas de milhas por dia sem se cansar. Ao fim da jornada, o mestre a transformava em uma gravura de papel; dobrava-a e guardava-a em uma pequena caixa ou dentro do bolso. Para fazê-la retornar à forma anterior, bastava desdobrá-la e espargir sobre ela um pouco de água. A mula ressurgia pronta para cavalgar. Marcílio França Castro.