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Mensagens

É de ferro teu destino

Vitalina Varela, 55 anos, cabo-verdiana, chega a Portugal três dias depois do funeral do marido. Há mais de 25 anos que Vitalina esperava o seu bilhete de avião.

A sua contraparte

O entrelaçamento quântico (ou emaranhamento quântico, como é mais conhecido na comunidade científica) é um fenômeno da mecânica quântica que permite que dois ou mais objetos estejam de alguma forma tão ligados que um objeto não possa ser corretamente descrito sem que a sua contraparte seja mencionada — mesmo que os objetos possam estar espacialmente separados por milhões de anos-luz.

Salva o teu dia

A caminho do trabalho, passo por um anúncio publicitário da Aspirina, que grita na minha direcção «Salva o teu dia!». Mas que dia há para salvar? O de hoje, o de ontem, o de amanhã? Todos os dias, milhares deles, fechado num «open space», preso a um «posto de trabalho», entre as 9h00 e as 18h00, ou as 19h00, ou as 20h00? Que comprimido me pode salvar disto? No máximo, posso tentar salvar uma pequena parte da minha noite. Nunca o dia.

Revelação

Era uma da tarde quando saí da sessão clandestina de Vitalina Varela em enorme sobressalto. Senti o sol, o calor e os turistas como uma afronta. Refugiei-me na Igreja de São Roque. As revelações também acontecem aos ateus: sentada e de olhos fechados, percebi os verdadeiros perigos que os filmes de Pedro Costa enfrentam: o amor apostólico, a estetização danosa.

Desportos & Divertimentos

As trotinetes abandonadas no chão na avenida da Liberdade parecem animais mortos. Percebi logo que os atiradores eram os clientes das lojas finas. Cheguei mesmo a imaginá-los — altivos como os deuses gregos dos anúncios de perfumes — a disparar dos terraços. Também havia música e champanhe francês. Acho que li demasiado Saunders, vejo parques temáticos em todos o lado.

Tudo comunica

, também como Walser.

3) "Tinha a expressão que imagino ser a do rosto do Bartleby de Melville", escreve Simic sobre Cornell. "Sua expressão no dia em que decide interromper o trabalho para olhar somente para o muro do outro lado da janela do escritório". Simic não vai além em seu anúncio de uma possível metempsicose entre Bartleby e Cornell. Só afirma que "existem homens assim em todas as grandes cidades", vagando solitários pelas ruas, envolvidos em seus longos capotes fora de moda. O olhar perdido, mas intenso, também como Walser; o longo capote fora de moda, também como Walser.  Kelvin Falcão Klein, Longos capotes

Beep beep

“As observações filosóficas deste livro são comparáveis a um conjunto de esboços paisagísticos surgidos ao longo destas enredadas e longas viagens” — escreve Wittgenstein no prólogo das Investigações. O esplendor da natureza parece uma proposta aprazível. Wittgenstein não nos avisa, porém, que a paisagem é uma sequência de desfiladeiros.

Técnicas de distracção

Os erros de leitura nem sempre são errados . Li “cada frase tem uma detonação” e só ao chegar ao fim do parágrafo é que percebi que a palavra impressa era “denotação”. Faz mais sentido, é verdade, mas às vezes vale a pena inserir algum estardalhaço no texto — nem que seja para distracção.

Isto é só o princípio

O palco está tomado por uma enorme pilha de cadeiras brancas. Quatro actores negros , duas mulheres e dois homens, irrompem da plateia e aproximam-se do palco. Olham em silêncio para as cadeiras, como se avaliassem o esforço e a dimensão do trabalho a que se propõem. Despem todas as roupas e sobem ao palco. Durante alguns minutos, que parecem uma eternidade, empurram a pilha de cadeiras para um canto. Ou melhor, libertam o palco de toda aquela tralha, todo aquele lixo acumulado ao longo de pelo menos quinhentos anos. Quatro sísifos entregues a um trabalho hercúleo. E isto é só o princípio.

On

A principal inovação dos novos telemóveis da Huawei , os Mate 30, é o facto de não terem um botão para desligar. Com estes «aparelhos», os utilizadores estão sempre ligados. Sempre ligados. Sempre ligados. Sempre ligados. Sempre ligados a quê?

“Apontar para uma coisa com a atenção”

O fragmento 275 das Investigações Filosóficas é inebriante. Wittgenstein escreve céu azul (podia ser rosa vermelha, mesa de trabalho, flor amarela) e parece que estamos no jardim infantil a brincar com cubos e triângulos. Depois pega num pau de giz e traça uma linha no chão junto aos nossos pés; do outro lado está tudo o que não nos ocorrerá pensar . Afinal não é uma brincadeira (adeus Alice); é uma prova de esforço. Ficamos com uma vontade danada de saltar o risco. Não basta um passo. É necessária uma equação.

275

Olha para o azul do céu e diz a ti próprio: “Que azul que está o céu!” Se fizeres esta experiência espontaneamente — sem intenções filosóficas — então não te ocorrerá pensar que esta impressão cromática pertence apenas a ti . E não tens qualquer hesitação em te dirigires, com esta exclamação, a uma outra pessoa. E se, ao pronunciá-la, apontas de todo, então apontas para o céu. Quero eu dizer que não sentes que apontas para-ti-próprio, o que muitas vezes acompanha o “dar o nome à sensação”, quando se reflete sobre a “linguagem privada”. Também não pensas que não deves apontar para a cor com a mão, mas sim com a atenção. (Medita sobre o que é “apontar para uma coisa com a atenção”). Investigações Filosóficas, de Ludwig Wittgenstein. Tradução de M. S. Lourenço. Edição da Fundação Calouste Gulbenkian. Setembro de 2002.

No futuro seremos todos filósofos

Ler as “Investigações Filosóficas” de Wittgenstein é capaz de ser a experiência que mais nos aproxima da aprendizagem dos sistemas de inteligência artificial. Mesmo praticando uma leitura superficial e aleatória, sentimos uma espécie de corrente eléctrica a atravessar os pensamentos. No futuro seremos todos filósofos.

Não é meu

Há uns dias, entalei numa porta o dedo médio da mão esquerda. Sob a unha, há agora uma mancha negra de sangue pisado. De vez em quando, a mancha irrompe inesperadamente entre as páginas de um livro, sobre as teclas do computador, num copo com água, no gomo da laranja, no pão e no queijo sobre a mesa. É o meu dedo, mas por instantes não o reconheço. Não é meu. Como uma parte rasurada da minha mão. Ou uma gorda gralha num texto muito amado e impossível de corrigir.

Anos de chumbo

Nos meus anos de chumbo não houve bombas, balas, rusgas policiais, brigadas vermelhas, fugas de informação, prisões, torturas, traições, greves de fome, palavras de ordem, saídas de incêndio, ferro, fogo. Não houve nada nos meus anos de chumbo. Apenas a sombra cinza e insuportável do vazio.