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Mensagens

Não haverá nunca uma porta. Já estás dentro.

A arquitectura de “Vitalina Varela” é sem arquitectos; oscila entra Jorge Luis Borges e brutalismo orgânico (ver edifício da igreja).

Tudo se esclarecia — vale e serra

Chove muito, a água corre nas ruas como um riacho. Mas não está frio. Nem há vento. As pessoas estão mais caladas e mais bonitas — têm sono. As mulheres trazem molhos de crisântemos nos braços para o dia dos mortos. Sem saber, a cidade prepara-se para receber Vitalina Varela.

uma arte de vagabundos superiores

Que respeito pelos objectos. Cada um tem beleza própria porque é «único», possui o insubstituível. Mas não se trata de arte social, a arte de Giacometti, só por ele estabelecer laços sociais entre objectos – o homem e as suas secreções –, será antes uma arte de vagabundos superiores, a tal ponto puros que apenas o reconhecimento da solidão de cada ser e de cada objecto os uniria. «Estou só, parece dizer-nos o objecto, cativo de uma necessidade contra a qual nada podeis. Se não fosse o que sou, seria indestrutível. Sendo o que sou, e sem reservas, a minha solidão reconhece a vossa.» Jean Genet, "O Estúdio de Alberto Giacometti", tradução de Paulo Costa Domingos, Assírio & Alvim, março de 1988.

não fluida, antes pelo contrário, muito dura

Se pronunciei atrás «… aos mortos» foi afinal para que essa multidão anónima veja agora tudo quanto não pôde ver em vida, agarrada que estava aos ossos. Pois é preciso uma arte – não fluida, antes pelo contrário, muito dura – dotada do estranho poder de penetrar os domínios da morte, capaz de se infiltrar pelas paredes porosas do reino das sombras. A injustiça – e a nossa dor – seriam demasiado grandes se um único nessa multidão fosse impedido do contacto com alguém entre nós, e bem pobre será nosso triunfo se apenas nos conduz a uma glória futura. A obra de Giacometti transmite ao povo dos mortos o conhecimento da solidão de todos os seres e de todas as coisas, solidão, nossa mais certa glória. (…) Solidão, como eu a entendo, não designa estatuto de miséria mas secreta soberania, nem profunda incomunicabilidade mas conhecimento mais ou menos obscuro de uma singularidade intocável. Jean Genet, "O Estúdio de Alberto Giacometti", tradução de Paulo Costa Domingos, Assírio

Bairro

Ontem, na antestreia de «Vitalina Varela» , no Trindade, não havia uma pessoa negra na plateia. Era uma sala branca, burguesa, vagamente caviar. Depois do filme e das fotos para o instagram, toda a gente saiu para beber um copo, reservar mesa no restaurante, e trocar umas ideias sobre a Vitalina e o Ventura. Eu incluído.

Porto

Recomeçou a chover. As ruas esvaziaram-se de turistas. Desço a Lapa até à Baixa sem me cruzar com praticamente ninguém. De repente, a cidade retoma o tom cinzento, triste, belo. A cidade que, em dias de sol e de turismo, já só existe nas traseiras ou na nossa memória.

Nem te espera no negro crepúsculo uma fera

Antestreia de "Vitalina Varela" de Pedro Costa, com a presença do realizador e seguida de debate com o público, moderado por Daniel Ribas. Hoje, às 19:00, no cinema Trindade.

É veneno!

Os filmes do Pedro Costa dão luta, podemos andar dias, meses, anos, a remoer em certos planos ou até mesmo em pormenores; uma palavra gritada, uma cruz que se apanha do chão. É tudo muito lúgubre, muito rico, muito condensado, muito misterioso. Trabalhamos sobre possibilidades ambíguas. Tentamos construir hipóteses de caminho. Com sorte, descobrimos que o céu é debaixo da terra. Quando Vitalina sobe ao telhado, lembra as mulheres dos filmes Ford — Maureen O’Hara com os cabelos e têmpera do fogo. Essa é a primeira impressão. O reconhecimento de uma ligação dá algum consolo, mas depressa se esvai a segurança. O que o plano tem de vigoroso não é cinéfilo nem alivia. É no sentido contrário, por isso é preciso continuar a procurar mais fundo a origem da inquietação. Talvez a tensão extraordinária dessa imagem venha do método de trabalho, do modo como a câmara responde a Vitalina. Como se todas as questões técnicas — ângulo, enquadramento, luz, sombra, vento — representassem o mesmo des

O que é que isto quer dizer?

Não é fácil escrever sobre “Vitalina Varela”. Mas em vez de debitarem frases imbecis (“Visão arrebatadora e magistral entre o horror e o melodrama, a espiritualidade e o desespero.” / “Um retrato da natureza consumidora do amor e da beleza da solidariedade feminina.”) , talvez fosse preferível os júris dos festivais atribuírem os prémios com um simples agradecimento.

Golpe de raio

Quando escrevi sobre “Vitalina Varela” não consegui dizer nada sobre o plano em que ela sobe ao telhado. Há imagens assim; mais do que significados, têm uma energia que nos deixa a ferver por dentro e sem coragem para dar um passo. Ainda não desisti.
Com a pompa habitual das empresas tecnológicas, a Google anunciou que atingiu a  supremacia quântica . Não é necessário tanto alvoroço por causa de bits que são zeros e uns ao mesmo tempo. Avisem quando o Sycamore conseguir escrever um limerick que nos faça rir.
Na wikipédia há uma série de possibilidades de desambiguação para quântico . Esqueceram-se da poesia: De novo amo e não amo, / Estou doido e não estou doido. Anacreonte , tradução de Frederico Lourenço, "Poesia Grega de Álcman a Teócrito, Cotovia.

A chave do texto

Pensar com as mãos (take 2)

Jerónimo de Sousa é o político que melhor se relaciona com as palavras. Usa-as para exprimir pensamentos e não para exercícios de comunicação. Quando diz:  não sabia fazer uma lei, mas sabia o que era fazer uma greve, ser despedido sem justa causa por motivos político-ideológicos, vir do Sindicato dos Metalúrgicos e da Comissão de Trabalhadores da empresa e falar de liberdade sindical e dos direitos, do valor da Contratação Colectiva e do combate à discriminação salarial das mulheres. Percebemos que os seus pensamentos correspondem a uma prática. Se nos concentramos bastante, conseguimos ver o passo da história. E aquilo a que Godard chama pensar com as mãos?

Observações avulsas sobre a boavista #14

O google maps guarda um mundo ainda recente mas que já não existe. Passo aqui todos os dias. O Hiva Oa (polinesian bar) fechou e foi substituído pelo D’Avenida (Fine Dining & Clubbing). Quando fizeram as obras, cortaram o salgueiro. Fotografia: google maps, abril de 2018.

Observações avulsas sobre a boavista #13

Quase em frente ao baldio, na rua Azevedo Coutinho, há uma empena com três janelas e persianas ao nível do rés-do-chão. Uma empena é uma parede lateral sem aberturas, preparada para receber outro edifício encostado. Também é costume dizer que é uma parede cega, mas esta não, esta é claustrofóbica. Fotografia do google maps, julho de 2014.

Observações avulsas sobre a boavista #12

O caminho de terra batida junto ao muro do edifício Burgo (às vezes pára lá ao fundo uma carrinha para vender qualquer coisa, talvez fruta e legumes). O bairro Bessa Leite com roupa a secar à janela. E o baldio onde agora cresce milho e se estende até ao acesso à VCI. Todo esse espaço corresponde ao território dos cães e coscorões de Tati. Fotografia da google maps, abril de 2018.

Mummlius Spicer

Encostado à janela, examinou as nossas cartas de recomendação com um cuidado extremo. Adivinhava-se-lhe a profissão pela maneira como manuseava os papéis. Os financeiros lêem com mais atenção do que os bibliófilos; conhecem melhor do que estes os inconvenientes que podem resultar de uma leitura demasiado apressada. Bertold Brecht, “ Os negócios do Senhor Júlio César”, tradução de A. Ramos Rosa e Ana Maria Marques de Almeida, Portugália Editora.

Apenas um homem

O título da peça de Shakespeare é «A Tragédia de Júlio César». A companhia , porém, optou por rasurar « A Tragédia de ». O que permanece visível no título é o nome de César: « A Tragédia de Júlio César.» Um nome isolado, solitário, terrivelmente exposto. Um peso descomunal abate-se pois sobre ele, quando na verdade César é apenas mais um homem, um caso, um nome riscado da superfície da história. O que permanece é «A Tragédia», mil vezes repetida, tantas quantas as mulheres e homens que alguma vez puseram os pés neste mundo. Tragédia é sinónimo de César, Cássio, Bruto e de todos os nomes conhecidos e desconhecidos, de «países por nascer e línguas ainda ignoradas». E é exactamente por isso que esta opção é tão notável. As palavras que se tenta esconder sob um risco ou o corte de uma lâmina gritam mais do que quaisquer outras. Esconder é tentar mostrar melhor. César é apenas um homem, a tragédia é de todos.