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Mensagens

Não sei

Talvez certos leitores desejem conhecer a minha opinião acerca do carácter de Petchorin. A minha resposta é o título deste livro. «Mas é uma ironia maldosa!», dirão. Não sei. Mikhail Lermontov, Um herói do nosso tempo. Tradução de Jaime Brasil.

Oh, o amor intergeracional.

Falta de concentração

As personagens literárias parecem-se connosco, só que são construídas de um modo mais concentrado.  Enquanto nós somos aquela sopa de legumes que vem nas ementas dos restaurantes e os empregados apenas sabem que são feitas com legumes; as personagens literárias seguem um plano existencial definido (receita), têm características apuradas e distintas — são caldo verde, canja de galinha, sopa de beldroegas com queijo de cabra ou até, em caso de extrema necessidade,  vichyssoise .

Espaço

O confinamento e «Abril» , de Otar Iosseliani, provam várias coisas. A saber: bancos, cadeiras e cadeirões ocupam muito espaço. Os espelhos, as cristaleiras e os aparadores também. Mesas, secretárias e estantes exigem muito, muito espaço. Assim como os frigoríficos e os fogões. Os sofás são das coisas que ocupam mais espaço. Pequenos objectos, como pratos, copos, talheres, e pequenos electrodomésticos, como ventoinhas, aspiradores ou torradeiras, em conjunto, ocupam espaço a mais. O amor, a música e as árvores não ocupam espaço, mas definham em espaços demasiado preenchidos.
Sarjetas Abertas . Mais um título formidável — desta vez apanhei-o na saída da A28 para Leça da Palmeira, escrito num sinal de perigo. Não serve para a literatura oficiosa que prefere coisas limpas, arrumadas, inócuas. Talvez um filme de série B do século passado, nunca visto, perdido num armazém qualquer. Banal e apressado, como é próprio de um filme menor, mas com uma sequência nocturna ( muito parada ) que nos pica como um mosquito.

Todos no mesmo barco

«Estamos todos no mesmo barco», insistem o colunista de jornal e a vizinha na frutaria. Mas que barco é esse? Um transatlântico, um veleiro, um bote de borracha? E quem viaja nos camarotes de primeira? Quem segue na casa das máquinas e no porão? Quem vai cair à água?

Truques

- (...) Garanto-lhe, pode crer, que há pessoas para quem está escrito, desde o seu nascimento, que lhes deve acontecer toda a espécie de aventuras extraordinárias. - Extraordinárias?! - exclamei com curiosidade, voltando a encher o meu copo. - Vai ver; vou contar-lhe uma... (...) Mikhail Lermontov, Um herói do nosso tempo . Tradução de Jaime Brasil. (Infelizmente, não tenho a tradução da Nina Guerra e Filipe Guerra .)

Voltar ao trabalho

- Bem, tenho de voltar ao trabalho - disse o Fred. A prensa de madeira chama por mim. O que é que vais fazer? - Acho que vou escrever - disse. - Trabalhar no meu livro um bocado. - É um plano ambicioso - disse o Fred. - O livro é sobre o o clima, como disse o professor? - Não, não é sobre o clima. - Ainda bem - disse o Fred. - Não ia gostar de ler um livro sobre o clima. - Já leste algum livro? - perguntei. - Não - disse o Fred. - Nunca li, mas acho que não quero começar por ler um sobre nuvens. Richard Brautigan, Em açúcar de melancia . Tradução de Sara Veiga.

Influenciadores do século XX

Abertura da época balnear em Nápoles.

Uma bicicleta para um

Escrevi uma reclamação às finanças sobre o IRS através do e-balcão. A resposta chegou tão depressa e foi tão elucidativa que resolvi continuar a conversa: expliquei o que me induziu em erro e agradeci a rapidez do serviço. As finanças repetiram a mensagem anterior — só nessa altura é que detectei os erros ortográficos e percebi que se tratava de um texto sintético. Indiferente à textura da linguagem humana e à dialéctica, a inteligência artificial não conseguiu identificar o elogio e começou a plissar.

Máquina

Em «Paris qui dort», René Clair imaginou a história de um cientista louco que inventou uma máquina capaz de parar o mundo, congelando-o como num fotograma. Ao longo do filme, o mundo pára, pula e avança várias vezes, segundo as circunstâncias e os caprichos dos personagens. Neste momento, há centenas de laboratórios em todo o mundo, cheios de cientistas loucos à procura de uma máquina de fazer vacinas. Falta, no entanto, o mais importante: um René Clair.

Lições da Finlândia

Pratico o distanciamento social há muito tempo por isso a pandemia pouco alterou as minhas rotinas. A única coisa que mudou é do foro matemático: estou há quarenta dias sem trabalhar, ganho menos de seiscentos euros por mês. Sinto-me uma cobaia num laboratório social para “estudo da introdução do rendimento básico incondicional”. Como se pode comprovar pela imagem em anexo, a  experiência está a correr bem.

Quase por acaso

Comecei ontem a ler uma antologia de contos italianos. Uma edição da Arcádia , de 1963, organizada por Antonio Fiorillo. São mais de vinte autores e cada um deles é introduzido por uma pequeníssima nota biográfica escrita pelo organizador. Algumas das notas são tão curiosas que dou por mim a divertir-me mais com as considerações de Fiorillo do que com alguns dos contos. Esta nota, por exemplo: «O “Libro dei 7 savi”, os “Conti di antichi cavalieri”, as “Cento novelle antiche” ou “Il Novelino” são os primeiros exemplos de prosa que se conhecem na história da literatura italiana. Ainda não é uma prosa adulta, madura; mas denota já uma graça e uma espontaneidade que poderiam servir de exemplo aos novelistas de agora.» Ou esta: «Gaspare Gozzi (1713-1786) encontra-se nesta selecção quase por acaso.»
Totalement, tendrement, tragiquement.

Baratas tontas

Nos últimos dias, o governo não se tem poupado a esforços para convencer as pessoas a saírem de casa e a fazerem compras. Apesar disso, as ruas e as lojas continuam quase vazias. Os portugueses estão a resistir ao desconfinamento. «Por causa do medo», dizem os jornais . «O Anjo Exterminador» desceu decididamente sobre nós em todo o seu negro esplendor. Há uns três meses, o filme de Buñuel seria ainda uma obra delirante e subversiva, um exemplo perfeito da regra surrealista de «abrir todas as portas ao irracional». Hoje, o frágil muro que separa o real do surreal caiu definitivamente. O mapa das correntes artísticas está de pernas para o ar. É fácil imaginar os corredores das universidades de artes e letras cheios de baratas tontas, a correrem desatinadas, para a frente e para trás.

Flannery O’Connor e as galinhas

Take one Quando tinha seis anos tive uma galinha que andava para trás e apareceu na Pathé News. Eu aparecia junto com a galinha. Estava ali apenas para ajudar a galinha mas foi o ponto alto da minha vida. Desde então tem sido tudo anti-clímax. Take two Quando tinha cinco anos, tive uma experiência que me marcou para toda a vida. A Pathé News enviou um fotógrafo de Nova Iorque a Savannah para tirar uma fotografia a uma das minhas galinhas. Essa galinha, uma Cochin Buff Bantam, distinguia-se porque conseguia andar para a frente e para trás. A sua fama espalhou-se pela imprensa, quando chamou a atenção da Pathé News suponho que já não havia mais nenhum sítio para onde ela pudesse ir — nem para a frente nem para trás. Pouco depois morreu, como agora parece apropriado. A partir desse dia com o homem da Pathé, comecei a colecionar galinhas. O que tinha sido apenas um interesse moderado tornou-se uma paixão, uma demanda. Preferia as que tinham um olho verde e outro laranja, ou com pesco...