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Mensagens

Amanhã

Chuva, chuva, chuva sem fim. As paredes pingam, cursos de água atravessam o chão da cozinha, a roupa jamais secará. Amanhã, ao acordarmos após sonhos agitados, vamos ver-nos na nossa cama, metamorfoseados em monstruosos anfíbios.

Os mortos

O que me custa mais na tradução de “Lágrimas e Santos” é não poder discutir com Cioran a escolha e a ordem das palavras. É certo que com a minha idade já aprendi a falar com os mortos e posso usar essa via, mas não é a mesma coisa. Os mortos são pouco dialogantes, não se querem chatear: aferram-se à negativa ou concordam em demasia — desprezam o conhecimento.

Bigode

A relação entre Marinetti e os seus pares cubo-futuristas russos nunca foi pacífica. Marinetti criticava nos eslavos o interesse pelas profundezas cósmicas da religião, incompatível na sua perspectiva com o Futurismo. Os russos, por seu lado, não apreciavam as maneiras, as intervenções belicosas e o bigode de Marinetti.

So much less personal!

(...) I find myself marvelling less over the sweeping insights of the novel and more over the intricate delights of its language and form. I keep thinking about the shocking velocity of Woolf’s sentences, how they rocket off into the sky, trailing sparks of emotion behind them. I keep thinking about how beautifully, how gracefully, how ecstatically, even, she makes use of dashes and commas and parentheses to capture the halting stutter-step of feeling being transmuted into thought. (...) Jenny Offill on Mrs. Dalloway

Nós somos de confiança

- Então, Armando, conta lá, o que é que estás a escrever agora? A temida pergunta acabou por chegar. Já tinham terminado a refeição e encontravam-se na sala de estar da residência barranquina, a tomar café. Pela janela entreaberta via-se o farol do molhe e a névoa invernal, que subia das falésias. - Não te faças desentendido - insistiu Óscar. - Já sei que os escritores às vezes não gostam de falar do que estão a fazer. Mas nós somos de confiança. Dá-nos essa primazia. Armando pigarreou, olhou para Berta como que dando a entender que os amigos estavam a ser inoportunos, mas, acendendo o cigarro, decidiu-se finalmente a responder. - Estou a escrever um conto sobre a infidelidade. O tema não é muito original, como sabem. Já se escreveu tanto sobre a infidelidade! O Vermelho e o Negro , por exemplo, ou Madame Bovary e Anna Karénina , para citar apenas duas obras-primas... Mas eu sinto-me atraído justamente pelo que não é original, pelo vulgar, pelo já trilhado... A este respeito, interpret...

Truz-truz

Nomes de algumas lojas da Rua Serpa Pinto: Confeitaria Bom Sonho, Ourivesaria Joaninha, Ferro Mago, Truz Truz Pão Quente, Ernestu’s, Café Moranguinho, Bufete É-Na-Ora, Agência de Viagens Mar de Prata, Hortinha Frutaria, Clínica Fisiátrica Calvário do Carvalhido, Radical & Boémio Shop, Best Deals Outlet.

Alvorada encantada

Aproveito o espírito natalício para escrever uma carta aberta e discordante aos colegas e gerentes da empresa onde ainda trabalho. Sem dúvida, devia ter enveredado pela carreira sindical.

Perdeu o seu emprego durante o último ano?

Recebi um email do jornal Público sobre a oferta de 2500 assinaturas digitais para desempregados.  Não sei se é um presságio.  Depois do lay off entrei e continuo ainda no apoio extraordinário à retoma progressiva de actividade que é o eufemismo pomposo para pré-desemprego — esse maravilhoso limbo onde ganhamos tempo para leituras.

Manual de auto ajuda

Às vezes parece-me que há demasiada soberba em "falhar melhor". Porquê melhor? Falhar não basta?  Não ser elegível para nada. Essa é uma boa meta; cumpri-la sem peito inchado. Pensar menos. Se a isto podemos chamar uma resolução.

Los Angeles

As notícias sobre a candidatura de Vitalina Varela  a Melhor Filme Internacional nos Prémios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas são inexactas. Falam em corrida aos Oscars quando os filmes de Pedro Costa seguem sempre uma marcha lenta e pesada. Nada dizem sobre a capacidade de Vitalina Varela transformar a má sorte de chegar tarde numa característica de força e espanto. E deixam para o último parágrafo a data da cerimónia: 25 de abril de 2021.

Roubo

Estou a tentar traduzir um autor chileno que foi acusado várias vezes de roubo. Não de roubo literário, mas de bens materiais: automóveis, câmaras fotográficas, livros. Diz-se que uma das vítimas foi Nicanor Parra. O autor levou da biblioteca de Parra um livro raro e valioso sem intenção de o devolver. Outro roubo famoso foi o de uma carrinha da polícia, que o autor desfez contra um muro. Na literatura, foi muito mais discreto: trabalhou obsessivamente nos seus textos, publicou muito pouco, não deu entrevistas e mergulhou numa espécie de anonimato voluntário. A biografia atribulada do autor transformou-se no seu «livro» mais popular. Talvez a intenção fosse justamente essa: desviar a atenção do que é essencial, quer dizer, dos transportes misteriosos da literatura. Um pouco como Walser que exigia a Carl Seelig um silêncio absoluto sobre os seus livros. Como se os textos nunca tivessem existido ou tivessem sido roubados e traficados num mercado negro fora deste mundo.

O expediente de uma grande princesa

Quando Maria Antonieta disse ou não disse “comam brioches”, isso devia ter sido entendido literal e metaforicamente. Não como um aparte de alguém que está alienado do real, mas como mais um ponto a reivindicar: liberdade, igualdade, fraternidade e riqueza para todos.  Com o tempo, será possível chegar a uma definição de riqueza justa? Nada em excesso, nada que falte.

Begin with A to remain intact

Not only is it necessary to prove the crystal but the crystal must prove permanent by fracture. Extremamente grata a Brian Dillon por me fazer descobrir An Essay on Virginia , de William Carlos Williams. Nota: O ensaio de William Carlos Williams é de 1925. Passei algum tempo a pesquisar e não encontrei referência a nenhuma tradução, nem cá nem no Brasil. Apenas citações de uma frase ou outra, no fundo como o exemplo de Dillon —  nada mais. Um texto como este e ninguém sentiu a necessidade de o traduzir? Não acredito.

Covelo

Levanto-me cedo e saio. Preciso respirar um pouco antes de retomar o trabalho. Para evitar o ruído e o fumo dos carros, escolho ruas secundárias até chegar ao Covelo. Na pequena alameda do parque, e seguindo as «subtis voltas do acaso», as árvores parecem-me fazer raccord com a sequência inicial de Belle de Jour . Estou certo de que, a qualquer momento, começarei a ouvir os guizos de uma carruagem. Mas nada acontece. Não é um Outono ameno. Não é Paris. Não é a luz de Buñuel. Volto para casa. Afundo-me no trabalho. Mais um dia.

De Vaugelas a Heidegger

Só me interessei realmente por Heidegger por volta de 1930 quando era estudante da Universidade de Bucareste. Sein und Zeit e especialmente Was ist Metaphysik foram os textos que me seduziram. Dois acontecimentos, um menor e o outro capital, refrearam o meu entusiasmo. Na época tinha publicado um artigo sobre Rodin num estilo mais ou menos heideggeriano que, com razão, exasperou um jornalista. A violência do seu ataque, que foi uma verdadeira execução, serviu-me de lição. Basta de palavreado ... genial! O segundo acontecimento foi a descoberta de Simmel, cuja clareza curou-me para sempre do jargão filosófico. A vontade de ser profundo, de fazer profundo, consiste em forçar a linguagem evitando a todo custo a expressão normal, a expressão inevitável. Nenhuma língua como o alemão favorece esse excesso, esse abuso. Obviamente, o génio de Heidegger é um génio verbal. A sua habilidade de sair de um impasse vem da facilidade em camuflá-lo usando todos os recursos da linguagem, inventando ...