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Mensagens

Cinco dias sem escrever

Sentado diante da folha. Sentado diante da folha três dias. Sentado diante da folha cinco dias. E «as coisas, dentro de mim, a gritar por ser ditas» (Llansol). Quando não são ditas, quando falta garganta e talento para gritá-las, as coisas transformam-se em veneno. Dentro de mim, há uma bolha de veneno. Não há remédios rápidos para esta doença. É deixar ferver até rebentar.

Até a Roménia

Quando Portugal se indigna porque "até a Roménia" o vai ultrapassar economicamente, esquece-se de que haverá um país qualquer que se indigna porque "até Portugal" o vai ultrapassar economicamente. Não há nada mais triste do que o orgulho dos mesquinhos. Pedro Ludgero. Mesquinhez, sim. E uma dose doida de sobranceria que resulta da nossa profunda, desgraçada e periférica ignorância.

Os meus livros

Foi à base de estimulantes (café, tabaco) que escrevi todos os meus livros. Desde que me é impossível tomá-los, a minha «produção» caiu para zero. Do que depende a actividade do espírito! Todos os meus livros são meios-livros, ensaios no verdadeiro sentido do termo. Desperdicei em conversas, sobretudo na juventude, o melhor de mim mesmo. Os meus livros, tanto romenos como franceses, não são senão um reflexo muito miserável do que era, do que sou. Os monólogos frenéticos de outrora não subsistem sequer na minha memória. Consumi-me com uma generosidade de que agora sinto a falta; gasta, dela só restam fragmentos. Mesmo que ainda a possuísse, já não a podia suportar, sustentá-la fisicamente , por falta de energia e vitalidade. Para certas virtudes é preciso um certo corpo. Os meus livros podem não ser bons — mas pelo menos têm o mérito de surgir de todos os meus sofrimentos. Quando estava a escrever o Breviário , lembro-me de afirmar com bastante frequência: «Vou ajustar contas com

Black Friday

Lembro-me muitas vezes daquela história do Picabia sobre o homem que mastigava um revólver. O homem já era velho e tinha dedicado a vida inteira a mastigar o revólver. Se parasse um só instante, a arma dispararia e era o fim. O capitalismo é este velho.

Fi!

É o registo mais reduzido dos Cadernos : uma palavra de duas letras, um ponto de exclamação, um som sibilante.  Sabendo como Cioran aprecia o laconismo e o assombro pré-verbal das interjeições [em junho de 1971 escreveu:  Decidi reunir as reflexões dispersas nestes trinta e dois cadernos. Só daqui a dois ou três meses é que verei se podem dar origem a um livro (cujo título poderá ser «Interjeições» ou então «O Erro de Nascer»). ], atrevo-me a afirmar que este Fi! descreve de forma desconcertante mas profunda toda a sua obra.  Como se trata de uma interjeição de irritação, tem imensas possibilidades de tradução e se nenhuma agradar também se pode inventar um som agreste que se ajuste aos modos exaltados do filósofo.  Alguns exemplos:  Se quiser encostar Cioran ao Pedro Costa e ao Rui Chafes (— e porque não? ficam tão bem os três abrigados na letra C ): Fora!  — E está tudo dito.  Também posso levar a interjeição para o lado dos russos (via Filipe e Nina Guerra, se não me engano), prese

Uma partida de xadrez

In May 1917, Henri-Pierre Roché played and lost a chess game against Francis Picabia over which the two had wagered the continuation of their respective New York-based Dadaist magazines (Roché's The Blind Man and Picabia's 391 ). Forced to discontinue The Blind Man as a result of his losing the chess match, Roché launched Rongwrong alongside co-editors Marcel Duchamp and Beatrice Wood, and published just one issue of the magazine. Duchamp had wanted to name the magazine "Wrongwrong", but the title was misprinted as "Rongwrong", and in true Dada fashion they accepted the mistake as the official title of their magazine. Daqui.

«Diante da morte, tudo é impostura»

Tenho jeito para entrar no espírito do tempo : no sábado comprei e li Como se Morre , de Émile Zola (belíssima edição da &etc com colaboração gráfica d'O Homem do Saco); e hoje estou a traduzir o que Cioran escreveu em Outubro de 1966 sobre a morte da mãe. Não pára de chover.

Asco

Não tenho palavras para expressar o asco que a reportagem sobre a violência racista de polícias e militares da GNR, publicada ontem no jornal , me provocou. Asco, asco, asco. Asco até à última das minhas células. Não sabia que Mamadou Ba vive hoje no Canadá. Teve de sair do país e da sua cidade para conseguir «respirar», e proteger a própria vida. Não sei o que dizer. Nós continuamos por aqui, mas é como se vivêssemos num país de conto de fadas. Um dos mais seguros do mundo. O país onde não há racismo nem nunca houve. Onde ninguém é racista. Asco.
O vento é importante, (...) o vento não é nada mais do que espírito.

Despertar

No filme de Márta Mészáros, Diary For My Loves (no original, Napló Szerelmeimnek ), a notícia da morte de Estaline, em 1953, é ilustrada por uma sequência no balneário feminino da escola de cinema de Moscovo. As raparigas acabam de despertar e a notícia, transmitida pela rádio, apanha-as de surpresa, enquanto lavam a cara e as mãos. Os gestos de todos os dias mudam repentinamente. É como se sentissem a água limpa e fresca pela primeira vez.

Selfie VIII

Consulta de rotina. A médica pergunta como me sinto. Respondo com frases banais, omito o diagnóstico mais justo: preciso de ver um filme de Rivette. (Não, isso não chega, preciso de estar dentro de um filme de Rivette.)

Bruxaria

Os Mummers de St. Louis eram jovens profissionais. (...) Quase todos trabalhavam em outro emprego além do teatro. Tinham que fazê-lo, já que não ganhavam nada com teatro. Eram trabalhadores. Eram balconistas. Eram garçonetes. Eram estudantes. Havia prostitutas e vagabundas e tinha até uma pós-debutante que era membro da Liga Júnior de St. Louis. Muitos eram bons atores. Muitos não eram. Alguns não sabiam nem mesmo representar, mas o que faltava em habilidade, Holland [o director do grupo] os insuflava com entusiasmo. Creio que aquilo tudo só acontecia por bruxaria! Era como uma definição daquilo que penso que o teatro é. Algo selvagem, excitante, algo que você não está acostumado a ver. Excêntrico é a palavra. Tennessee Williams.  Tradução de Luiza Jatobá.

Azar do Foucault

As Palavras e as Coisas  ficou entalado entre dois livros de Cioran ( Breviário de Decomposição #62 e as Lágrimas e Santos #65) . Nos Cadernos , há duas anotações sobre o livro de Foucault escritas em abril de 1967. São críticas irascíveis, como é hábito, mas também se podem qualificar de divinatórias de circunstância :  No livro de Foucault As palavras e as Coisas , que não tenho vontade nenhuma de ler, encontrei uma frase em que ele põe Hölderlin, Nietzsche e Heidegger ao mesmo nível . Só um universitário podia cometer tamanho erro de lesa -génio. Heidegger, um professor ao lado de Nietzsche e Hölderlin! — Isto faz-me lembrar aquele crítico que se permitiu escrever: «de Leopardi a Sartre» — como se de um ao outro pudesse haver a menor filiação. Um poeta, um espírito supremamente verdadeiro de um lado, um intrujão talentoso, mas intrujão, do outro. Esse tipo de comparações, esta confusão de valores põe-me fora de mim. No livro de Foucault é frequente a referência à «finitude antrop

Onde fica Cabeza de Lobo?

Onde fica Cabeza de Lobo? Onde fica o local onde Sebastian perde a vida em Bruscamente no Verão Passado ? Em Espanha, como sugerem as pistas que Tennessee Williams espalhou pelo texto? No México, como acreditam alguns?  Ou Cabeza de Lobo será antes uma espécie de indício da Lobotomia que, mais tarde, penderá como uma lâmina sobre a cabeça de Catharine? Ou, arriscando um pouco mais, será um lugar dentro da cabeça de cada um de nós, agentes e vítimas de múltiplas lobotomias diárias? «O homem é o lobo do homem», escreveu Hobbes. Tennessee Williams é mais frio: o homem é o lobo de si mesmo. Haverá uma saída? Haverá salvação?

Sabão macaco imita Van Gogh

 

Chamamento

Devo ter sonhado. Ou talvez tenha misturado ideias diferentes. Eu estava convencido de que o antropólogo Jorge Dias tinha escrito que o som das ondas, aquela espécie de música contínua do mar, como um coro de nereidas, era uma das explicações para a chamada «expansão portuguesa». No entanto, e por mais que procure, não encontro esse texto. A explicação «poética» de Jorge Dias pode nunca ter existido, mas Koreyoshi Kurahara mostra qualquer coisa muito parecida nos últimos planos de Johny Coração de Vidro . Após longas e espinhosas viagens em terra, Mifune entra no mar, atraída pelo chamamento das ondas, e desaparece. Restam os sapatos na areia. Kurahara cria qualquer coisa que está entre o conto de fadas, os mitos gregos e a história falsa de Jorge Dias.

Observações avulsas sobre o bonfim #50

 

Piolhos e percevejos

Que uma das frases mais antigas do mundo guarde a vontade de arrancar piolhos já é um dado muito interessante para a história da humanidade. Mas se fizermos uma montagem arriscada e deslocarmos as palavras gravadas no marfim para dentro do filme Vai e Vem,  a carga semântica explode como fogo de artifício: consigo ver João Vuvu com o pente na mão e até o oiço a ler a benção com o tom de quem diz uma didascália.  O cinema liga bem com a arqueologia.