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Mensagens

Incendiar o mundo

A ambiguidade é um grande trunfo de Jeanne Dielman . Podemos levar o filme para onde quisermos, ele segue-nos, obedientemente ou com relutância, mas depois volta à sua forma original — intacto, pronto para outro devaneio. Podemos andar nisto muito tempo.  Hoje de manhã, à revelia de Chantal, durante a viagem de metro ocorreu-me que os dois últimos planos podem ser uma imagem do que se passa na cabeça de Jeanne. Nesta versão, o crime e a pausa depois do crime não são executados, são apenas idealizados ou talvez seja melhor dizer: potencializados . Claro que isso mostra-nos uma personagem ainda mais perturbada porque acumula ideias revolucionárias num sítio obscuro da sua cabeça — uma mulher que não mata aquele homem mas é capaz de incendiar o mundo inteiro amanhã.

Lembro-me

Lembro-me , de Joe Brainard, é um livro genial. Se tivesse de o definir através de uma imagem, recorreria ao papel que a Regina Guimarães filmou no atelier de Ângelo de Sousa, pouco depois da morte do artista, em 2011. Estava fixado num painel, entre outros papéis, como um lembrete, e dizia: «Fazer as rectas ligeiramente curvas.»   

O casaco sem botão

Apesar de ser um filme terrível, Jeanne Dielman tem duas situações cómicas.  Numa das vezes em que vai deixar ou buscar a bebé, a vizinha conta que não sabe o que há-de fazer para o jantar (Jeanne não tem esse problema porque segue um menú semanal rígido). Estava no talho sem saber o que comprar, desorientada repetiu o pedido da cliente anterior e acabou por trazer um quilo de vitela, mas em casa ninguém gosta de vitela — por ela comia só uma sandes e pronto. A vizinha fica sempre atrás da porta, nunca a vermos, só ouvimos a voz e é a voz de Chantal.  A outra é quando Jeanne dobra e embrulha um casaco com muito cuidado numa folha de papel (é o que tem nas mãos na fotografia) e percorre várias lojas à procura de um botão, mas não o consegue encontrar. Uma das empregadas diz mesmo que nunca viu um botão igual. A determinada altura ela explica que é um casaco como novo do sobrinho que vive no Canadá que só agora serve ao filho, mas como ela sempre ouviu dizer que a Europa está m...

Domingo

Ontem à noite, voltamos a ver Fugiu um Condenado à Morte . A cena de Fontaine pendurado na corda, a atravessar os muros da prisão de Montluc, lembra as sequências dos trapezistas de Varieté , o filme que tínhamos visto de manhã, no Batalha. O dia fez um arco.

Movimento de um corpo que cai

A partir do segundo dia, Jeanne Dielman começa a desempenhar as suas tarefas de um modo mais distraído: esquece-se de as executar ou não as executa pela ordem adequada, nem no tempo certo, nem com a intensidade aconselhada. Lentamente começa a fazer tudo um pouco mais rápido. Podemos não saber o que aconteceu, mas apercebemo-nos que essa aceleração significa que estamos perante um corpo em queda livre.

Durante a noite

Ontem, depois das dez, a polícia fechou a entrada do bairro com dois carros-patrulha. Um camião gigante veio e ocupou a rua. Homens com coletes reflectores elevaram-se no ar, bruxuleantes como pirilampos. Uma grua com mais de vinte metros desapareceu durante a noite. Esta manhã, o céu está cheio de nuvens e gaivotas. Nada mais.

Jeanne Dielman

Passou uma semana e continuo a pensar no filme de Chantal Akerman como se tivesse acabado de o ver. Já me afastei da tradução de Uma família de Bruxelas,  da mãe de Chantal e de tudo que vem por arrasto, mas continuo com muitas imagens demasiado presentes na cabeça. O cão de porcelana que está na cristaleira da sala de jantar, por exemplo, não me dá tréguas. Assim como o reflexo do néon azul. (Isso e o plano de entrada no prédio quando Jeanne passa pela porta quadriculada intermédia junto às caixas de correio que fica entreaberta e depois continua a afastar-se da câmara, entra no elevador e corre as duas portas de grades do elevador — todas essas linhas que mostram a enclausura em que ela se fecha — são o lado formal e hitchcokiano do filme?) E também os sons dos interruptores, dos tacões e dos cabides, que funcionam quase como um metrónomo.   Em certo sentido, Jeanne Dielman faz-me lembrar Der Lauf der Dinge , de Peter Fischli e Weiss — tem o mesmo carácter hipnótico. Prende...

Les fruits secs de la vie

Voltei ao Cioran. Ao traduzir uma anotação dos Cadernos de finais de 1967, encontrei um insulto esquisito: fruits secs — assim mesmo no plural e com um sentido que não está registado nos verbetes dos dicionários. Depois de pesquisar, percebi que era um insulto do século XIX (Cioran tem esta capacidade maravilhosa de agarrar o que há de mais vivo numa língua, venham as palavras do passado ou do futuro). Historicamente, a expressão é muito rica e esteve prestes a sair da redoma do francês, bastava que Flaubert não a tivesse descartado para título do que viria a ser A Educação Sentimental . No entanto — e apesar de não faltarem por aí frutos secos —,  duvido que no nosso tempo pudesse surgir um insulto deste tipo, nem sequer em França. Seria necessário, pelo menos, exagerar um pouco o atributo para instaurar alguma estranheza:  murcho , ressequido ou até mesmo mirrado .  Quanto à tradução, podemos fazê-la à letra explicando numa nota de rodapé o sentido figurado: não se t...

Reacendimentos

É muito provável que aquilo que aterroriza uma geração não provoque mais do que um sorriso perplexo à geração seguinte. Lembro-me de como, em 1964, apenas vinte anos após a guerra, Harold Clurman, o encenador de Incident at Vichy , mostrou aos actores o filme de um discurso de Hitler, na esperança de lhes dar uma ideia do período nazi em que decorria a acção da minha peça. Os actores, vendo como Hitler, perante um imenso estádio repleto de adoradores, se punha em bicos de pés, em êxtase, com as mãos entrelaçadas debaixo do queixo e um esgar de sublime auto-satisfação, agitando afectadamente o corpo, riram dos exageros daquela actuação. (Arthur Miller, Porque escrevi As Bruxas de Salém , incluído no Manual de Leitura de As Bruxas de Salém , com edição do TNSJ e tradução de Rui Pires Cabral.) Miller escreve este texto em 1996. Vinte anos depois, com as fogueiras de novos fanatismos a irromperam por toda a parte como um vendaval, pergunto-me se os actores de agora, vendo Hitler, terão a m...

As leis do mercado

Dois ou três bancos faliram nos Estados Unidos e um grande banco na Suiça está prestes a cair. As primeiras páginas dos jornais pintam-se com os títulos do costume: «crise bancária», «risco sistémico», «quedas históricas nas bolsas». Regressam em força os comentadores de economia e o seu olímpico despudor: «toda a gente sabia que ia acontecer», «todos os economistas e comentadores previram isto», «a culpa obviamente é do regulador», «a falta é dos bancos centrais», «a responsabilidade é dos estados». Adivinham-se facilmente os próximos comentários dos mesmos sábios: «O Estado tem de intervir», «o Estado tem de apoiar os bancos», «o Estado tem de pagar». Ah, a beleza do mercado.

23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles.

Um filme terrível

Se não me engano, as coisas começam a correr mal no segundo dia quando Jeanne coze demasiado as batatas para o jantar, ela deixa-as a cozer ao fim da tarde quando vai atender os clientes, mas desta vez cozeram demasiado e ela não sabe o que fazer com essas batatas, podia fazer puré, mas quarta-feira não é dia de comer puré (carne estufada com batatas cozidas à terça; panados de vitela com ervilhas, cenouras e batatas cozidas à quarta, rolo de carne à quinta), então leva a panela com as batatas para o quarto de banho talvez para as despejar na sanita mas não despeja e volta para a cozinha, hesita e acaba por as deitar no balde do lixo. A verdade é que desde aí tudo corre não só mal, mas cada vez pior: esquece-se de tapar a terrina da sala onde guarda o dinheiro e às vezes esquece-se de desligar os interruptores e tem de voltar atrás para os desligar, e depois não tem batatas que cheguem para o jantar e tem de ir à loja comprar um saco de batatas tão tarde a uma hora não habitual e o...

Domesticidade triangular

Acabei a tradução de Uma família de Bruxelas . Vou fazer uma comida picante para o almoço como Natalia Akerman gostava. Ao fim da tarde, Jeanne Dielman, 23, quai du Commerce, 1080 Bruxelles .

Piolho

Há uns seis ou sete anos comprei uma limeira num horto. Estava carregada de pequenas limas, verdíssimas, do tamanho de bagas. Em casa, passei a arvorezita para um vaso largo e fundo, e instalei-a na varanda. As limas caíram todas antes de crescerem. Um triste Outono fora de tempo. Nunca mais floriu. Entretanto, mesmo com o fumo pestilento dos carros e as cagadelas das pombas, as folhas encheram-se de piolho. O piolho é um bicho muito resistente. Usei vários métodos para tentar eliminá-lo, incluindo receitas naturais. Alguns piolhos morreram, de facto. Mas julgo que de velhice. Tinha simplesmente chegado a sua hora.

Faina e folgança

Sonhei com a Chantal. Estávamos sentadas a comer, a beber, a fumar e a dizer piadas. Eu sou como a mãe da Chantal, não tenho jeito nenhum para piadas, mas no sonho safava-me porque estávamos as duas perdidas de riso. Se calhar já lhe tinha contado a cena da Jeanne Dielman destronar o Hitchcock.

A community of desires

So , from November, 2012, to October, 2013, I kept a record of most of my visits to the Auchan superstore in Cergy, where I usually go, for reasons of convenience and pleasure essentially linked to its location inside the Trois Fontaines shopping center, the largest in Val-d’Oise.