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Mensagens

A escada

24 juin   Variations Goldberg … Après ça, il faut tirer l’échelle.  Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  A expressão francesa significa que se atingiu o máximo, não se consegue fazer melhor. Podemos meter o dicionário no bolso e ir por aí com segurança: «… Depois disto, não se fará melhor». Ou então, realçar uma certa renúncia que está implícita (e é bem cara a Cioran) e contrapor, com alguma malícia, uma expressão do tipo: «… Depois disto, mais vale arrumar as botas».  Mas, na verdade, continuo a pensar na escada e também (e acima de tudo) no gesto de a deitar fora  ( com extrema secura ): «... Depois disto, deitar fora a escada».
Cheguei ao fim de 1971, só falta um ano para o fim, trinta e tal páginas.  31 dez. 1971 Esta noite, pesadelo grandioso, desproporcional, vertiginoso.  Acordei a chamar pela minha mãe...  Quanto a dizer em que consistiu esse pesadelo, sinto-me incapaz.  1º Janeiro de 1972  Tristeza constante que me parece inútil analisar. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 

Um jogo para desfrutar

Uma pessoa lê um texto da Agustina. É um exemplo. Uma coisa curtinha como Cave Canem , escrito em 1968 (tinha ela 46 anos). São duas páginas. A pessoa lê e conclui, mais uma vez, que nunca passará de um aprendiz de feiticeiro. O que resta? A pessoa lembra-se daquele conselho que os treinadores de futebol das equipas pequenas e remediadas dão aos jogadores antes de um desafio com uma equipa de milionários: «É um jogo para desfrutar.» É um bom conselho para o eterno aprendiz de feiticeiro: «Desfruta.» Não é pouco.

Um recadinho amoroso

Conheci escritores obtusos e até mesmo estúpidos; todos os tradutores que conheci eram, sem excepção, inteligentes e muitas vezes mais interessantes do que os autores que traduziam. (Há mais reflexão na tradução do que na «criação».) Emil Cioran, Cadernos 1957-1972 (outubro de 1971)

O Porto em Agosto

Em Agosto, o vento acha-se mais à vontade. Está livre de obrigações: não há chuva, nuvens, nada. Entra pelas casas como se tudo isto fosse de papelão. Voam cortinas e fotografias, as portas batem com estrondo, sombras uivam debaixo da escada. Talvez Kafka tenha sonhado com o Porto em Agosto quando lhe apareceu o primeiro Odradek.
Viena não era infame como a representava Karl Kraus, e provavelmente a Roma Antiga não era como a pintava Juvenal, mas sem a exasperação furiosa de Kraus ou de Juvenal não teriam sido desveladas, como pelo violento rasgar de um véu, certas expressões extremas, certas deformações anormais que o rosto do Homem pode assumir. Danúbio, de Claudio Magris. Tradução de Miguel Serras Pereira. Quetzal.

O velho demónio

À noite fomos ao Trindade ver A Máquina de Matar Pessoas Más , de Rossellini, que passava na Sala 1. À mesma hora, na sala ao lado, a Sala 2, estreava Retratos Fantasmas , de Kléber Mendonça Filho. O raccord perfeito. O velho demónio das imagens ainda tem pernas para passar as noites a saltar de uma sala para a outra e fazer das suas.

A nossa língua italiana

Tenho uma predilecção por ensaístas italianos. Deve ser qualquer coisa que há na língua e passa das palavras para os pensamentos. É fácil recorrer ao lugar comum da musicalidade, mas na verdade acho que não é bem uma questão de música, é antes da música. Talvez seja ar — como se corresse sempre um vento que nos impele para qualquer coisa?

Fugir do verão como da peste

Devia reconsiderar o «problema» do suicídio: parece que negligenciei os seus aspectos mais interessantes. Podia considerá-los agora, pois notei que é de preferência no verão que me sinto disposto a abordar uma questão destas. Será o calor? Será a luz? O sol sempre me incitou a repensar este mundo e despertou em mim crises de melancolia às vezes insuportáveis. As minhas «trevas» impedem-me de me pôr em uníssono com o esplendor envolvente; do choque entre o que sinto e o que vejo nasce este estado de humor negro e tudo o que daí advém.  O verão é a estação das grandes impossibilidades. O sol é um fornecedor de ideias negras . Nada convida tanto à melancolia como uma paisagem devastada pela luz. Fugir do verão como da peste. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972  

Zazie

Fiquei admirada por não terem convidado a minha gata para nenhuma palestra da Feira do Livro. Ela é, como se costuma dizer, especialista na poesia de Manuel António Pina e tem ideias muito interessantes sobre a relação entre versos e garras, deuses e bárbaros. E por aí fora.

Às portas da Ásia?

O acaso pregou-me outra partida: em poucas semanas, Danúbio é o terceiro livro que fala de Cioran. Na página 314, lá surge a referência ao filósofo romeno — quase imperceptível, quase piscadela de olho. Como tudo que Magris escreve, é inteligência musical.  «Esta paisagem magiar, forte e ao mesmo tempo indolente, seria já o Oriente, memória ainda fresca das estepes asiáticas, dos Huinos e Pechenegues ou do Crescente; Cioran celebra a bacia danubiana enquanto amálgama de povos vitais e obscuros, ignorantes da História, ou seja, das periodizações ideológicas inventadas pela historiografia ocidental, seio e linfa de civilização ainda não desvitalizada, aos seus olhos, pelo nacionalismo ou pelo progresso.»

Exercício teatral

Num debate com estudantes e comunistas sobre o panfleto em verso «O PCI aos jovens!» onde Pasolini ataca os estudantes-meninos do papá, um desses estudantes, o segundo da transcrição incluída em Entrevistas Corsárias , faz uma intervenção estupenda.  Começa por esclarecer que os estudantes não se vão enfurecer com Pasolini porque o poema foi desmentido pela história .  Depois aconselha Pasolini a conhecer melhor os jovens de quem fala, indo às barricadas ou lendo algumas linhas — claras e úteis — dos clássicos: Lenine, Marx, Engels.  Feitas as citações apropriadas, refere que em seguida têm de se levantar e ir embora porque são esperados na Apollon, uma fábrica ocupada. E saem.  Imagino tudo isto num palco com marcações bem definidas. Também me entretenho a tentar adivinhar o percurso deste jovem das barricadas de 1968 até agora. O corvo marxista deve saber se ainda está vivo, se continua a apreciar a clareza dos clássicos e por aí fora. O tom — não podia ser ou...

A grande greve dos encadernadores de livros

Leio num livro de Shlomo Sand que o anarquista Eugène Varlin foi o líder da «grande greve dos encadernadores de livros», ocorrida em Paris, no Verão de 1864. Hoje podia facilmente ser o título de um livro de poemas: «A grande greve dos encadernadores de livros.» Varlin não sobreviveu à Comuna de Paris: foi preso pelo exército, linchado e depois fuzilado.

Sonho corsário

Levaram-me à sede do Partido Comunista. Era uma sala ampla cheia de estantes com livros e algumas cadeiras espalhadas — parecia uma biblioteca. Fiquei tão contente que, vez de me sentar para discutir como os outros, fui investigar as lombadas. (Infelizmente já não me lembro dos títulos.)  No fim, disse a um dos camaradas:  — Não têm nenhum livro de Pasolini! — Pasolini não era do Partido*. — Era mais comunista do que vocês todos! * Foi expulso em 1949 por «indignidade moral» — no sonho não sabia disso, mas a resposta é maliciosa porque os autores dos outros livros também não eram do Partido

Os caminhos de Trenque Lauquen

Depois de ver a primeira parte de Trenque Lauquen , nessa mesma noite, sonhei com o filme e resolvi o mistério: não se tratava de fuga ou desaparecimento, aqueles dois homens não conseguiam encontrar Laura porque ela tinha-se transformado num pronome. A dormir, isso era uma coisa aceitável. Ao ver a segunda parte percebi que, para além da estupidez intrínseca do sonho, sou irritantemente europeia, quer dizer, só gostei da última sequência em que a personagem Laura e a actriz Laura piram-se aos devaneios fantásticos da realizadora Laura. Essa fuga está ao nível do recado impecável que ela deixa no pára-brisas e, quem sabe, ao nível de Alexandra Kollontai.

Resta ainda uma alegria

Os jornalistas adoram emitir juízos morais e ainda fazem títulos deste género sobre os habituais-aborrecidos estudos de mercado: Portugueses usam alívio no IVA para reforçar a cesta com cerveja e marisco .  Não percebem que o que escrevem apenas revela o seu espírito tacanho e cangueiro. Em contrapartida, o que as pessoas fazem sempre é festejar. Mesmo sem as saberem, seguem as palavras de Hölderlin, e isso não é coisa pouca: « Es bleibt uns überall noch eine Freude. Der echte Schmerz begeistert. Wer auf sein Elend tritt, steht höher ...»