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Mensagens

O lado luxuriante

O Camião é um livro compósito. Abre com uma épigrafe de Maurice Grevisse sobre o carácter temporal do condicional. Depois vem a conversa entre Marguerite Duras e Gérard Depardieu sobre aquela mulher que pede boleia na estrada e conta a sua vida, mais as descrições da paisagem por onde o camião avança, e algumas didascálias. Seguem-se os textos de apresentação: quatro projectos onde Duras fala das suas intenções e do estado do cinema. Por fim, a entrevista de Michelle Porte. E a entrevista acaba com uma pergunta de Marguerite Duras.  M. P .: Acho que do que mais gosto n’  O Camião é que o filme fala de tudo ao mesmo tempo.  M. D .: O lado luxuriante?

Se eu o conseguisse compreender, compreenderia tudo

Faltam-me palavras para contar o que aconteceu na minha história. Não a posso contar. Talvez o homem branco e calado fosse a Morte. Talvez a mulher que esperava, ansiosa, fosse a Vida. Mas o velho de barbas grisalhas e o dos olhos malévolos intrigam-me. Por muito que pense, não os consigo compreender. A maior parte do tempo, porém, não é neles que penso, mas no janota que passou toda a minha história a rir-se. Se eu o conseguisse compreender, compreenderia tudo. Sherwood Anderson, O Triunfo do Ovo e Outras Histórias . Tradução de José Miguel Silva.
É nos anos oitenta que começa o Godard de que mais gosto (tem a ver com Anne-Marie Miéville). Prénom: Carmen , de 1983, é já uma espécie de música, uma música do pensamento? Compreende-se com o corpo. — Oui, monsieur Jeannot, il faut fermer les yeux au lieu de les ouvrir

La puissance de Godard

Na véspera do arranque da campanha eleitoral, fui rever Prénom: Carmen . — Comment ça s’appelle, quand tout le monde a tout gâché et que tout est perdu, mais que le jour se lève et que l’air quand même se respire ? — Cela s’appelle L’Aurore, mademoiselle.
Já não vale a pena fazermos o cinema da esperança socialista. Da esperança capitalista. Já não vale a pena fazermos o cinema de uma justiça por vir, social, fiscal ou outra. O cinema do trabalho. Do mérito. O cinema das mulheres. Dos jovens. Dos portugueses. Dos malianos. Dos intelectuais. Dos senegaleses.  Já não vale a pena fazermos o cinema do medo. Da revolução. Da ditadura do proletariado. Da liberdade. Dos vossos fantasmas. Do amor. Já não vale a pena.  Já não vale a pena fazermos o cinema do cinema.  Já em nada acreditamos. Acreditamos. Que alegria: acreditamos: em nada.  Já em nada acreditamos. Já não vale a pena fazermos o vosso cinema. Já não vale a pena. Temos de fazer o cinema do conhecimento disso: de não valer a pena.  Que o cinema vá para o inferno, é o único cinema.  Que o mundo vá para o inferno, que vá para o inferno, é a única política. O Camião.  Textos de Apresentação. Primeiro Projecto.  Marguerite Duras (tradução revista).

Rue du Temple

Nunca enterro completamente os mortos. De vez em quando ainda vou a Rolle visitar Godard.

Espantosa época

PRIMEIRO BISPO: Que época. Que bela carnificina cometesteis, filhos meus. (Senta-se num trono) SEGUNDO BISPO: Espantosa época, amados irmãos. Vemos o bacalhau da Terra Nova a lançar-se ele próprio na direcção do anzol. (Senta-se no seu trono) TERCEIRO BISPO: Digo que é uma época espantosa. Ou então assombrosa, como vós quiserdes. (Senta-se no seu trono) Aimé Césaire, E os cães deixaram de ladrar . Tradução de Armando da Silva Carvalho.

Pobres Faustos involuntários

No filme de Ildikó Enyedi, O meu século XX , Thomas Edison é um personagem tristonho, abatido e deslocado. A impressão é a de que as suas ideias e invenções, causa de fama e fortuna, são uma maldição que se abateu sobre ele. Edison parece lamentar o papel que lhe coube no destino da humanidade. Quase conseguimos ouvi-lo dizer, como Bartleby, «I would prefer not to». De certa forma, este personagem de Enyedi lembra os modernos cientistas «arrependidos» de Silicon Valley, celebridades que se fartam de publicar best sellers e dar entrevistas sobre os riscos catastróficos das redes sociais e da inteligência artificial.

Tempo de intervenção

O condicional é o tempo verbal que nos espera, que espera por nós. Não é como o futuro que já está definido (por quem?) e por isso fechado. No condicional há uma folga em que somos chamados a intervir, em que podemos transformar o «se» em modo presente. No condicional, como no filme de Marguerite Duras, o que teria sido, é.

É esta insensibilidade que temos que combater

A memória da humanidade para os sofrimentos passados é surpreendentemente curta. A sua imaginação para os possíveis sofrimentos futuros é ainda menor. É esta insensibilidade que temos que combater. Pois a humanidade é ameaçada por guerras que não têm em conta as esperiências anteriores. E essas guerras terão lugar se àqueles que as preparam não lhes forem cortadas as mãos. Bertold Brecht, 1952, citado no final de Antigone ou Die Antigone des Sophokles nach der Hölderlinschen Übertragung für die Bühne bearbeiteit von Brecht 1948 

O tempo do verbo

Na conversa com Michelle Porte que acompanha a edição de O Camião , Marguerite Duras diz: é o primeiro filme que faço, e talvez o primeiro filme que se faz, onde o texto suporta tudo .  Mas neste texto/filme a questão gramatical é tão crucial que, creio, pode-se ir mais longe e dizer que é o único filme feito no condicional lúdico ou futuro hipotético — como as brincadeiras das crianças.

Uma palavrinha dos nossos patrocinadores

Uma nota no jornal: «Meio século depois da Revolução, ainda não há igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. Este é o grande tema do aniversário do PÚBLICO, no ano em que se celebram os 50 anos de Abril. (...) A edição desse dia, quando fazemos 34 anos, tem como directora convidada Maria Teresa Horta.» E logo a seguir: «Com o apoio de BIG - Banco de Investimento Global.»
Vinha do supermercado com um saco de compras quando começou a chover intensamente. Do outro lado da avenida, umas pessoas correram para se abrigarem debaixo da pala do edifício junto à bomba de gasolina. Atravessei, mas quando lá cheguei tinham desaparecido. O vento era tão forte que virou o meu guarda-chuva ao contrário e já estava com as botas e as calças todas molhadas quando alguém abriu a porta e me chamou: — Entre, abrigue-se aqui.  Entrei. No pequeno átrio do edifício estavam seis pessoas (três mulheres e três homens) de roupas escuras, os cabelos molhados, a olhar para a chuva através dos vidros embaciados; de vez em quando diziam alguma coisa. E eu pensei: — Caramba, isto parece mesmo o princípio de um filme.

Andar em círculos

Fomos ao Trindade rever Underground , de Kusturica. Na minha memória, era o último filme do realizador que ainda valia a pena ter em conta. Meia desilusão. O último terço do filme já anuncia o Kusturica grotesco, reaccionário, ubuesco, no pior dos sentidos. Tinha bons motivos para ter esquecido essa parte. Há, no entanto, uma cena que quero reter: a cadeira de rodas com os corpos dos velhos amantes em chamas, às voltas, sem parar, em torno de um crucifixo com o Cristo tombado. Pouco importa o que está imediatamente antes e o que vem depois. Quero fixar apenas essa cena. Lembra-me a carrinha a rodar em círculos, sem ninguém ao volante, de Os Anões Também Começaram Pequenos , de Herzog. Ou os carros na rotunda em Playtime , de Tati. Mas uma cadeira de rodas em chamas à volta de um crucifixo mutilado é outra coisa. É a imagem do relógio do mundo, movido a ódio, cegueira e violência.